Carta #10 (ou uma ode à simplicidade)
sobre castelo rá-tim-bum, outono, vidas imaginárias e jardinagem
Ana,
Queria começar agradecendo pelo esforço de ter escrito a sua última carta num momento que não era lá muito convidativo à escrita. A verdade é que, sem querer, você acabou criando uma carta muito gostosa de ser lida. Talvez isso se deva fato de que ela não pretendia ser nada além de um honesto relato da sua tentativa de enfrentar dias tormentosos, lançando mão de pedaladas ao sol e de bolos de iogurte. A singeleza da sua carta #9 me lembra o episódio 23 do saudoso Castelo Rá-tim-bum, em que acontece uma competição de sanduíches. Nele, o Pedro, a Biba e o Zequinha fazem sanduíches superelaborados, cheios de ingredientes - o Zequinha chega a colocar no seu um pouco de chantilly. Mas Bongô, juiz da competição, acaba declarando o sanduíche do Nino - um mero pão com manteiga - o grande vencedor. No fim, todos acabam concordando que a escolha era mais do que acertada. Viva a simplicidade!
Agora, cá entre nós. Aqui embaixo da nossa amoreira, espaço em que nos compete fazer estritamente o que nos dá na telha, devíamos simplesmente normalizar esse subgênero literário: o da carta não conteudista. A carta não conteudista é aquela que se limita a descrever a vida, os dias, a rotininha nossa de cada dia, acompanhada, no máximo, de um ou outro insight raso. É a carta que não quer mostrar repertório cultural nem inteligência. Que não tem a menor expectativa de servir nem mesmo de entretenimento ao leitor. Que não se pretende nada além de carta. Que não se pretende nem mesmo letter, quanto mais uma newsletter (rindo muito da minha própria piada ruim). E nessa toada de carta sem conteúdo meio engraçadinha, vou aproveitar pra contar o que fiz neste último domingo do dia 2 de junho.
Passei a manhã lavando e estendendo roupa. Aqui em São Paulo, o outono finalmente deu as caras e por isso precisei meter na máquina os meus cobertores e agasalhos, que estavam cheirando a guardado e me obrigando a consumir altas doses de Loratadina diariamente.
Depois do almoço, resolvi ir a um Garden Center que tem ali na Bandeirantes. O lugar era muito bonito, mas achei os preços abusivos. Ainda assim, consegui ir embora com umas comprinhas, porque fiz como me ensinou minha avó Marly e botei no carrinho apenas itens promocionais: petunias, rosas, uns temperinhos e uma samambaia gigantesca que custou 14,90. Levei comigo o Milu, que apreciou o passeio a seu modo e esfregou o próprio corpo em todos os sacos de fertilizante que encontrou pela frente.
Na volta pra casa, enquanto dirigia, me dei conta de que a vontade de fazer aquela incursão jardineirística não surgira ao acaso. No dia anterior eu tinha ido ao cinema ver Jardim dos desejos. Sobre o filme, faço minhas as palavras do meu amigo Daniel, que também estava presente: "Não gostei nem desgostei”. (Repare: é esse o tipo de crítica de cinema que a gente encontra numa carta não conteudista). Não posso nem oferecer grandes sinopses, porque praticamente qualquer coisa que eu dissesse seria um spoiler, mas dá pra contar pelo menos que o personagem principal é um jardineiro meio marrento e muito metódico, que anota em seus diários observações sobre o crescimento e a floração das plantas, sobre as raizes, a poda, a terra, o clima.
Tem uma brincadeira que eu faço sempre comigo mesma: a de imaginar vidas que eu adoraria ter tido se não tivesse a minha própria vida. Numa dessas vidas imaginárias, por exemplo, eu seria nadadora de travessia profissional, em outra, aeromoça da Emirates. Algumas dessas vidas são meio enfadonhas, como aquela em que, curvadinha em minha bancada, com uma pequenina chave de fenda, consertaria eletrônicos numa lojinha na rua Santa Ifigênia. Num ranking, a vida mais legal de todas é aquela em que eu, de uniforme cáqui e trança no cabelo, seria médica veterinária especialista em gorilas e viveria no meio da selva.
Quando saí do cinema no sábado fiquei pensando na minha austera vida de jardineira. Eu não teria tevê, computador ou celular. Moraria num bangalô aconchegante com meu cachorro Milu (Milu está sempre presente, em qualquer vida imaginária). Chegaria em casa no fim da tarde sentindo cansaço físico, depois de um dia de trabalho pesado com a enxada. Deixaria as botas sujas ao lado da porta e entraria em casa de meias. Tomaria um banho restaurador. Prepararia meu jantar com hortaliças colhidas da horta e, em seguida, sob a luz de um fraco abajur, faria as seguintes anotações em meu diário:
Reapliquei óleo de neem nas monsteras do canteiro direito, pois continuam com praga. Rosas começando a desabrochar. Lembrar de adubar os lírios esta semana.
Bocejando, fecharia o caderno. Faria carinho na cabeça do Milu, apagaria a luz e iria cedo pra cama.
Um beijo,
Gabi
Ps: Fiquei ouvindo Paulinho da Viola essa semana toda enquanto lavava roupas de frio e gravava meu curso on-line.
Ps2: Quando as coisas estão difíceis pra mim, ouço Cartola. “Preste atenção, o mundo é um moiiiiinho, vai triturar teus sonhos tão mesquiiiiinhos, vai reduzir as ilusões a póóóó.” É tão dramático que me faz rir. Canto alto e mando a tristeza embora.