Carta #11 (ou uma tentativa de construir sentido)
sobre escrever à flor da pele e sobre as mulheres da minha vida
Gabi,
Eu imagino que você saiba disso, mas vamos fingir que não: eu sou uma pessoa bastante organizada e metódica. Eu leio sua carta assim que recebo a notificação do e-mail e, em geral, passo os dias que se seguem pensando no que você escreveu, no que te responder, tirando umas fotos que posso acabar colocando na minha resposta, mas não esboço nada.
Eu gosto de tirar algumas horas da segunda-feira para sentar e escrever de uma vez. Organizo meu trabalho de modo a garantir umas horinhas para nossa troca de cartas. Sento na minha pequena escrivaninha e deixo as palavras saírem pelos meus dedos no teclado, leio e releio os parágrafos, corto trechos, refaço outros até que sinto que cheguei na carta que queria.
Sinto: essa é a palavra. Tento não racionalizar muito, tento não me censurar excessivamente (minha única preocupação é não expor outra pessoa de forma muito íntima). Às vezes uma imagem ou lembrança aparece e se relaciona com o que estou escrevendo e isso vai mudando o rumo da carta. Eu gosto disso. Gosto de escrever para você nesse fluxo de pensamentos, sentimentos e lembranças. Consigo terminar meu texto e programo a entrega para às 9h do dia seguinte.
Eu não tenho certeza se a minha carta passada (#9) foi assim, mas eu lembro que a #7 eu escrevi na terça mesmo e te mandei no final da tarde. Ali já era uma carta em que comecei a sentir uns ventos do que estava por vir. A carta de hoje eu comecei a escrever às 17h30 e espero terminar antes de esquentar algo para jantar e a tempo de te ligar. Tem sido difícil escrever à flor da pele. Ao mesmo tempo que tem sido um exercício precioso.
É desafiador estar no meio de um caos pessoal, com os pensamentos e os sentimentos embaralhados e se propor a mandar um texto que se pretende apenas ser uma carta não conteudista para uma amiga (eu amei essa sua definição). Ter que filtrar o que está acontecendo (como se eu pudesse alcançar tudo o que está acontecendo!), olhar para dias tão difíceis e escolher quais momentos ou, como na última carta, tentativas de encontrar paz e partilhar em um texto que é para uma amiga, mas que também vai ser lido por pessoas que não conheço, é tão difícil quanto tem me ajudado a encontrar um chão.
É que no meio de tanta coisa, eu (enquanto indivíduo, pessoinha, ser humaninho) me sinto apagada, vazia, inexistente. Só que ao parar para escrever eu tenho que existir, entende? Eu recupero minha voz e lembro que eu ainda estou aqui, que eu existo, e sinto, e penso, e estou tentando para caralho lidar com tudo e esse tudo é muito e não está sob meu controle (como se alguma coisa estivesse, coitadinha dela, mas isso fica para outro momento). Tudo o que eu tenho e posso fazer dos meus dias é parar e respirar. Como disse a Lali “manter seu autocuidado disciplinadamente”.
Escrever para você sabendo que outras pessoas vão ler me obriga a me distanciar um pouco das cenas que estou vivendo. É quase como se eu também visse tudo de fora, às vezes até consigo rir de mim mesma. É diferente de escrever em um diário, isso não estou conseguindo por enquanto. Ou de responder um e-mail de outra amiga querida. Como esse e-mail só vai ser lido por ela, ali eu posso falar tudo e tanto e por isso mesmo eu travo. Os meus dedos não dão conta do turbilhão de pensamentos. Coitada, me mandou um e-mail e recebeu vários podcasts em forma de áudio de WhatsApp. Não desisti de escrever para ela, só preciso de mais fôlego.
Voltando ao conselho da Lali, minha disciplina de autocuidado tem sido focar no meu trabalho com carinho e gentileza comigo mesma. Isso quer dizer trabalhar fazendo pausas, não indo além das horas combinadas e dizendo os nãos necessários. Estou em um projeto de edição de material didático para ensino fundamental I e eu adoro trabalhar com livros para os pequenos. Pensar que um ser humaninho vai aprender a ler e a escrever com um livro que eu ajudei a existir no mundo me dá um abraço por dentro, sabe? E eu também estou traduzindo um livrinho sobre dinossauros. Todos os dias eu faço um pouco dessa tradução e tento me lembrar que o Vinícius, meu sobrinho que está aprendendo a ler, ama dinossauros e eu quero demais visitá-lo e dar de presente o livro que a tia Paula traduziu, sentar no chão e ler junto com ele. Nada disso é usar o trabalho como tábua de salvação, ou se afundar nele para esquecer o que se passa ao meu redor (e dentro de mim). É uma tentativa consciente de olhar para o que eu faço e lembrar que é, sim, cheio de sentido para mim e para o mundo que eu quero construir.
Com a cabeça nesse turbilhão e o coração tão apertado, outro caminho que encontrei para não me perder foi começar um desafio de 30 dias de yoga. Você me apresentou a Adriane lá pelos idos de 2018, quando a gente corria juntas e fazíamos uns flows dela para aquecer. Desde então, vira e mexe eu me agarro aos vídeos dela (foram importantíssimos para mim nos dois longos anos de isolamento da pandemia). Os vídeos desse desafio dos 30 dias são curtos, coisa de 20 minutos no máximo, mas como é desafiador parar por esse tempinho! Chega a ser absurdo escrever que parar por 20 minutos apenas para focar na própria respiração e no próprio corpo é desafiador, mas as coisas estão assim. Paciência. Me agarro à felicidade de perceber que até agora não perdi nenhum dia.
Também tenho recorrido à água. Em um dos dias mais difíceis dessas últimas semanas, você me disse para lembrar de beber muita água e tomar banho. Eu achei curioso esse conselho porque eu amo tomar banho e eu sei como um banho, mesmo que curto, tem um poder curador para mim. Acho engraçada (e um pouco mágica) essa nossa sintonia.
Eu levei o conselho da água bem a sério e tenho me esforçado também para não perder as aulas de natação. Mesmo na semana mais difícil, conseguir entrar na piscina pelo menos uma vez e fazer meus singelos 500 metros de quem está começando. Eu gosto muito de nadar devagarinho, com os olhos bem abertos observando a luz do sol batendo nos azulejos. Sempre lembro das suas ilustrações e gosto de fingir que sou uma das suas nadadoras.
Para terminar minha lista desta carta, eu voltei a tricotar. Esse é um ponto delicado, porque ter uma agulha e fios nas minhas mãos sempre foi importante para mim. Aquela história de que não é terapia, mas é terapêutico, sabe? Sentar com um café (ou um vinhozinho) ao lado da Sarita, pegar um bordado e ir conversando sobre a vida é das coisas que mais sinto falta desde que me mudei de São Paulo. E eu fui parando de bordar por estar sozinha. Tentei frequentar um ateliê que tem aqui em BSB, conheci umas mulheres muito legais, mas a correria acabou fazendo com que eu não conseguisse voltar lá e de casa sozinha não é a mesma coisa.
Em março do ano passado, o bordado abandonado encontrou uma companhia: o tricô. Tricotar é o fazer manual que me salva quando estou muito ansiosa. O bordado exige alguma presença, você precisa prestar atenção no desenho, nos pontos e, quando estou com muita dificuldade de estar presente, é impossível. O tricô não, ele é quase um mantra. Minhas mãos apenas se movem e minha cabeça pode vagar até ficar devagar. Só que eu parei de tricotar em março do ano passado quando minha avó morreu. Foi ela quem me ensinou os primeiros passos do tricô e, depois que aprendi a fazer blusas, eu sempre tirava uma foto e mandava para ela. Durante os malditos dois longos anos do isolamento, eu tricotei blusas para mim e para presentear. Todas elas tiveram uma foto que foi respondida por um áudio da minha avó. Depois que ela morreu, eu parei a blusa que estava fazendo porque a ideia de terminar um tricô e não mostrar para ela tornava sua partida real demais. Essa ideia era insuportável.
Em um desses malditos dias difíceis aqui, quando dei por mim, eu estava olhando para o meu tricô abandonado (ele realmente estava numa cestinha num canto qualquer da sala) e resolvi tricotar. Só fui fazendo e deixando fluir e quando me dei conta só estava tranquila, sabe? É como se agora eu conseguisse sentir o colo da minha avó ao tricotar, como se ela vivesse de alguma forma pelas minhas mãos.

Tenho a impressão que repeti algumas vezes nesse texto “estar sozinha” (não vou reler para conferir, mas acho que sim), não é que eu não tenha pessoas queridas por aqui, é só que eu não consigo estar perto de outras pessoas estando tão vulnerável assim. Eu preciso de uma intimidade que me permita pedir os colos que eu conheço, sabe? Ou só poder ficar em silêncio. Eu preciso das mulheres da minha vida, desses colos, dessas escutas, de ser lembrada de tomar água, de ser lembrada de manter a disciplina no meu autocuidado, de ouvir sobre encontrar e estabelecer meus limites, de lembrar de onde eu vim e de ouvir as histórias delas enquanto eu conto a minha sem isso ser uma interrupção, sendo um suporte cheio de afeto e histórias tecidas em conjunto.
Esses dias eu liguei para minha mãe chorando e pedindo colo. Fazer isso foi tão importante para mim que eu nem sou capaz de escrever tão abertamente sobre isso. Nessa carta inventário de afetos, deixo uma foto nossa.

Na sua carta, você falou sobre imaginar vidas que adoraria ter tido. Eu às vezes faço isso também, já me imaginei sendo professora de dança, ou dando aula de yoga, ou sendo caminhoneira e atravessando o país de ponta a ponta. Também já me imaginei tendo um ateliê de costura com um café gostoso e espaço para as pessoas passarem a tarde bordando e conversando.
Tentei pensar no que seria uma vida que eu queria agora e a imagem que vejo sou eu em uma casinha no campo, com uma gata preguiçosa numa poltrona ao lado de um livro e um cachorro grandão e brincalhão correndo ao meu lado enquanto estou na minha horta colhendo alface e tomates frescos para fazer uma salada. Acho que essa imagem me veio porque lembrei daquela pet trip que fizemos. Lembrei de você, da Lali e eu colhendo umas hortaliças para o almoço e do Milu e da Amora correndo juntos no quintal. É uma lembrança muito gostosa, assim como eu esmagada pelo Milu e pela Amora no banco de trás do uninho.
Eu não sei bem como terminar esta carta, parece tudo tão cheio de voltas como meus pensamentos. Então vou encerrar com umas fotos das fotos que tirei para trazer para cá, minha ideia era ter minhas três grandes amigas no meu mural.



Essa carta doída e confusa virou uma grande lista sobre as mulheres da minha vida. Acho que é um jeito bom de parar de escrever por hoje.
Um beijo,
Ana
Não aguento esperar até terça que vem pra dizer que esta foi a carta não conteudista mais linda que eu já li ❤️