Carta #16 (ou dirigindo pela 23 de maio)
sobre percorrer estradas esburacadas depois de tirar carta
Ana,
Embora a gente viesse conversando bastante por mensagens e pelo telefone nas últimas semanas, eu não tinha muita certeza de como te encontraria na noite fria daquela terça-feira em que fui te buscar em Congonhas. Saí de casa um pouco depois que você me avisou que o avião tinha pousado, porque sabia que o percurso não devia durar mais que quinze minutos. Quando peguei a saída da Vinte e três de maio pro aeroporto, deparei com um túnel repleto de carros e demorei mais uns quinze minutos pra conseguir acessar o portão dos embarques, onde tínhamos combinado de nos encontrar. Enquanto exercitava minha paciência no trânsito, comecei a me sentir meio apreensiva ao imaginar como seria te encontrar. Mesmo quando conhecemos uma pessoa por muitos anos, pode ser difícil prever como ela vai se portar em situações de crise. Além do mais, eu não sabia qual teria sido o efeito, naquela tarde, de despachar as malas contendo quase todas as suas roupas e finalmente embarcar num avião pra São Paulo. Não sabia como você se sentiria ao pôr os pés nesta que continua sendo sua cidade natal, mas que tinha deixado de ser sua casa.
Depois que você acenou pra mim, eu estacionei o carro longe do campo de visão de qualquer CET (Ufa!) e acomodei as coisas dentro do Uninho: uma, duas, três malas e uma Ana Paula. Durante todo o caminho de volta, te ouvi narrar os acontecimentos daquele dia. Quinze minutos depois, enquanto dava seta pra virar à direita e pegar a saída da Vinte e três pra Tutoia, já tinha entendido que você estava bem. Não bem como a gente está num piquenique em dia ensolarado no parque, nem bem como nos sentimos durante uma viagem com as amigas pro litoral: você estava bem como quem acabou de percorrer uma estrada de terra esburacada na chuva um mês depois de ter tirado carta.
Chegamos. Abri o portão. Estacionei. Tirei as coisas (três malas e uma Ana Paula) de dentro do carro. O Milu e a Jamine foram nos receber na porta. Tomamos chá. Você se acomodou aqui no meu sofá-cama, onde passou a dormir todas as noites com várias mantinhas empilhadas pra dar conta desses dias gelados e úmidos em que as roupas nunca secam no varal. Desde então, sinto que a tensão daquela noite de terça-feira, quando você tinha acabado de percorrer uma estrada esburacada na chuva, foi se dissipando. Você foi ficando um pouco mais tranquila, capaz de um enorme senso prático e de muita força de vontade. Capaz de fazer yoga e de ler sobre yoga. Capaz de fazer tricô. Capaz de muitos chás de hortelã e de comer dois potinhos de brigadeiro do Sesc de uma vez. Capaz de dar risada de si, coisa que eu considero importantíssima. Capaz de perseguir sonhos e vontades que ainda nem estão tão claros assim, mas que de alguma forma te guiam numa direção pra onde você não parece ter medo de caminhar.
Temos feito juntas as refeições. No último parágrafo da sua última carta você se diz um pouco atordoada, mas em cada jantar eu tenho a sensação de que você está um pouquinho melhor do que no café da manhã.
Sinto uma grande felicidade de poder te oferecer abrigo nesse momento. Agora me resta torcer pra que a sua próxima casa seja aqui perto de mim e do Milu.
Um beijo,
Gabi