Ana,
Hoje faz uma semana da morte do meu avô. Você acompanhou a piora do estado de saúde dele, me viu ir algumas vezes visitá-lo. Ficou sabendo das minhas noites de insônia e também do dia em que fui até a clínica ajudar meu irmão e minha avó a resolverem as burocracias do velório e do enterro, enquanto meus pais tentavam voltar pra São Paulo de avião. Essas coisas todas você viu.
O que você não viu, e que por isso talvez caiba contar aqui, é que pessoa extraordinária foi o meu avô e a importância que ele teve pra que eu tornasse quem eu sou.
Meu vovô Quim cresceu na roça, no interior de São Paulo, e quando criança não gostava de usar sapatos. Tinha uma memória impressionante: se lembrava com riqueza de detalhes de fatos ocorridos há dezenas de anos. Era o melhor contador de histórias que já conheci. Era muito carismático. Tinha as mãos grandes, ásperas e cheias de calos. Entendia tudo de motores. Era meticuloso: gostava de fazer as coisas bem-feitas e permitia que levassem o tempo que precisassem levar. Sabia os nomes das plantas e sabia cuidar da terra. Permitia que uma enorme cobra verde habitasse as vigas do telhado da sua casa no sítio, alegando que ela era "bonitinha”. Estava sempre buscando a armadilha perfeita contra as formigas. Esfregava as palmas da mão com força antes de se deitar, nos dias frios. Vivia assobiando e, com sua voz grave, cantava Orlando Silva com expressão dramática no rosto. Posso vê-lo de camisa xadrez, calças jeans e suspensórios, apertando um parafuso e cantarolando:
Foi meu avô quem me ensinou a pular porteira e a andar a cavalo. Foi ele que me ensinou a organizar minhas ferramentas, pregos, buchas e parafusos. A encontrar minhoca pra usar de isca e também a pescar. A debulhar milho. A crer fielmente na ideia de que eu sou capaz de consertar qualquer coisa que existe (mesmo sem ter metade da habilidade que ele tinha). A gostar de camisas de flanela bem velhinhas. A instalar espelho de luz na parede. A vedar os vidros das janelas. A adubar as plantas. A pedir sempre um pão francês a mais na padaria pra poder ir comendo no caminho de casa. A tratar bem as pessoas. A não ter nojo de cocô de vaca. A cortar o tostex em pedacinhos com a faca. A comer laranja de tampinha. A ler manuais. A passar por baixo da cerca de arame farpado e a catar pinhão. A comer uma enorme quantidade de biscoitos de maisena depois do almoço com o café. Isso, aliás, ele ensinou também pro Milu, que o aprendeu de muito bom grado. "Pega mais um, Bié!” dizia ele segurando o pacote de bolachas na minha frente. Eu pegava e dizia: “Só mais um, vô".

Que privilégio ter sido sua neta e que saudades eu vou sentir do senhor.
Ana, há um mês seu voo aterrissou em Congonhas. Ontem, após percorrerem uns bons mil quilômetros de estrada, as suas caixas cheias de livros finalmente chegaram de Brasília e estão empilhadas aqui na minha sala. Daqui, seguem pro seu novo apartamento, que fica a apenas 500 metros de distância, ou sete minutos de caminhada, segundo o Google Maps.
Desde a sua última carta, você já assinou um contrato e já comprou móveis, eletrodomésticos e uma pipoqueira - da qual eu e o Milu pretendemos usufruir com certa frequência. Na próxima terça, é bem provável que você publique a resposta pra esta carta de dentro da sala do novo apartamento, sentada na sua nova escrivaninha. Isso confere a você o título de minha mais nova vizinha!
Que esse seu recomeço seja suave e bonito!
Um beijo,
Gabi
quem não vai conseguir esperar até terça para comentar sou eu dessa vez! que lindeza de carta, quanto amor e delicadeza nessas memórias. nossos avozinhos vivem em nós, nas nossas lembranças e em tudo que seguimos fazendo depois que aprendemos com eles <3