Carta #2 (ou adeus, elefante branco)
sobre neuroses, carnaval, amoreiras, caramujos africanos e suco de soja
Ana,
Você me escreveu pela primeira vez em novembro e, desde então, a pendência de uma resposta é um grande elefante branco na minha caixa de entrada. Acontece que, já faz alguns anos, eu me apeguei a esse hábito neurótico de “zerar o inbox”. Explico, caso você não esteja familiarizada com o conceito: zera-se um inbox apagando tudo aquilo que não presta (spam e afins), arquivando tudo o que já foi devidamente analisado e respondido e, por fim, categorizando o restante com etiquetas específicas. Sua carta ficou esse tempo todo posicionada bem no topo da lista, junto com boletos e demonstrativos de imposto de renda, todos agrupados na mesma pasta de coisas "para fazer”. Não houve um só dia desde novembro em que não tenha visto a sua mensagem e pensado que era preciso respondê-la. Desde então, três rascunhos indiscutivelmente ruins foram escritos e prontamente enviados… para a lixeira (o equivalente de você rasgando seu diário na sétima série).
Essa semana foi de Carnaval e eu, bem longe de ser considerada uma pessoa carnavalesca, mesmo assim bati ponto nos bloquinhos da cidade em todos os quatro dias do feriado. Pular Carnaval é algo que só muito recentemente aprendi a fazer. Pular é, talvez, uma palavra meio forte. Pular, não. Eu, no máximo, compareço ao carnaval. Ao comparecer, me divirto, coisa que nem sempre fui capaz de fazer. Antes de sair de casa, me esmero na maquiagem e na improvisação de adereços (esse ano eu fiz até umas compras na 25 de março). No bloquinho, danço, canto e me pego sorrindo com frequência. Uns anos atrás, isso tudo era absolutamente impensável, porque eu fugia de bloquinho tal qual a foliã média foge do banheiro químico.
Na sua carta você relembrou a amoreira onde a gente se encontrava pra matar aula de Latim e Literatura Portuguesa II. Eu fiquei pensando sobre ela. Sabe o que eu acho? Eu acho que a amoreira foi o início de um percurso que, naqueles primeiros anos de faculdade, nem imaginávamos que iríamos trilhar. Um percurso que tem a ver com descobrir juntas os Clássicos da Coleção Abril e comprá-los em sebos por três reais. Que tem a ver com ler ficção e com descobrir personagens que verbalizam as coisas que sentem pra gente conseguir entender e verbalizar as coisas que nós sentimos. Que tem a ver com dar voltas correndo ao redor do Parque Buenos Aires acompanhadas de uma quantidade assustadora de caramujos africanos fazendo a sua ronda na altura dos nossos tornozelos, bem devagarinho. Que tem a ver com sentar pra trabalhar juntas na mesma padaria ruim e comer pães na chapa superfaturados todo santo fim de semana. Que tem a ver com devorar em silêncio uma pizza redonda cortada em quadrados e com nunca mais aceitar o convite a subir degraus que não nos levem a lugares onde não nos sentimos bem. Que tem a ver, agora, com escrever (obrigada por ter tido a coragem de começar). Esse percurso, cujo ponto de partida são aquelas manhãs jogando conversa fora embaixo da amoreira da FFLCH, é a nossa amizade. Porque amizade é, simplesmente, um determinado caminho que se trilha, por um certo período, junto com alguém.
Começar a escrever essa carta foi difícil. Em vez de fluírem belas, límpidas e abundantes, como se fossem a nascente de um rio, as palavras jorravam feito água de torneira que ninguém abre há muito tempo, feito suco de caixinha com soja adicionada: esquisitas, turvas e artificiais. Mas eu persisti, os parágrafos avançaram e digitar foi ficando menos custoso. Deu até pra me divertir, olha só! Como no Carnaval. Que bom que a gente aprende a se divertir com as coisas. Que bom que a gente se propõe a aprender a se divertir com as coisas. Que bom que a gente aprende e, aprendendo, cresce. E que bom que tem gente disposta a fazer isso tudo junto com a gente.
Com estas palavras, encerro minha carta, retiro a etiqueta de "para fazer” desta conversa e transfiro para a sua caixa de entrada os direitos de posse temporária do elefante branco. Espero que vocês desfrutem da companhia um do outro. O nome dele é Bartolomeu.
Um beijo
Gabi