Ana,
Muitas vezes eu tenho a impressão de que a vida tenta conversar com a gente, enviando uma série de sinais. Algumas dessas mensagens são sutis, cifradas, cheias de poesia e possibilidades de interpretação. São trechos de conversas ouvidas ao acaso, letras de música e conselhos de amigos que parecem surgir dos lugares mais inusitados pra nos ajudar a desenvolver novas ideias, percorrer determinados caminhos ou revelar verdades ocultas sobre nós mesmos.
Mas há também uma outra natureza de comunicação que a vida parece estabelecer conosco. São mensagens de cunho prosaico e literal que se prestam, enfaticamente, a transmitir uma atmosfera desagradável. É o caso daqueles dias em que todos os eletrodomésticos da casa quebram de uma vez só, ou de quando pegamos gripe duas vezes no mesmo mês.
As mensagens sobre as quais vou tratar aqui nesta carta são dessa segunda natureza. Tiveram início há mais de duas semanas e se repetiram até a tarde de hoje, quando parece ter havido uma espécie de encerramento de ciclo. Torço vigorosamente pra que a minha sensação esteja correta.
Você poderá tirar suas próprias conclusões depois de analisar os fatos, que tentarei descrever com detalhes nas linhas a seguir.
Tudo começou num passeio de fim de tarde com o Milu.
Segunda-feira, 19 de agosto
17h12
Estou andando pelo quarteirão de casa distraída e gravo um áudio para uma amiga enquanto o Milu puxa a guia pra tentar alcançar alguma coisa que está a mais ou menos um metro de distância, no asfalto. Trata-se de um rato recém-atropelado. Consigo segurá-lo a tempo.
Terça-feira, 20 de agosto
07h30
Eu e Milu estamos voltando do nosso passeio matinal. Abro o portão, solto a guia da peitoral e permito que ele caminhe sozinho pela vila até a entrada de casa, como faço todos os dias. Mas em vez disso ele dá alguns poucos passos e fica paralisado, com as orelhas em pé e o rabo empinado, em frente ao portão do vizinho de cima. Fico tentando entender o que está chamando a atenção dele até ver um movimento no chão: um ratinho olhava pra nós antes de sumir dentro da garagem. Quando abro a porta de casa, o Milu vai direto pra escada e começa a farejar cada degrau. Depois, fica vários minutos farejando o andar de cima e o terraço. Isso me leva a crer que aquele ratinho havia visitado a minha casa antes de invadir a do vizinho.
17h32
Eu te mando uma mensagem relatando o ocorrido. Você me aconselha a traçar uma estratégia anti-ratos. Eu concordo que essa pode ser uma boa ideia pra ser executada um dia, num futuro distante, e respondo seu áudio com emojis carinhosos.
Quarta-feira, 21 de agosto
06h27
Estou ficando gripada e durmo mal de terça pra quarta, mas entre três e seis da manhã consigo entrar em sono profundo. Tenho um desses sonhos bem vívidos, cheios de acontecimentos e reviravoltas. No trecho mais marcante, e você e eu estamos sentadas no banco de uma praça. Ao nosso redor, vários ratinhos se aglomeram. São muitos, em torno de 200. Nossa tarefa ali é exterminá-los. O problema é que não são ratazanas horrorosas, mas pequenos camundongos no melhor estilo Ratatouille, todos portadores de um olhar doce e afetuoso. Você brinca com eles tal qual a Cinderela dentro de seu quartinho de gata borralheira e, sorrindo, administra com conta-gotas um líquido mortífero aos seus amiguinhos, que abrem a boca de bom grado pra receber o que acreditam ser alimento. Embora seja minha também a tarefa de assassinar os bichinhos, me recuso a fazer isso. São bonitinhos demais. Num dado momento, me deito no banco de madeira e fecho os olhos. Os ratos rapidamente escalam minha cabeça e ficam andando pelo meu rosto. Eu me levanto abismada, pensando que com tamanha falta de respeito vai ser difícil continuar a mantê-los vivos.
Segunda-feira, 26 de agosto
01h32
Acordo de um sono profundo, sobressaltada, com o barulho das patas do Milu aterrissando no chão de madeira. Ele havia pulado da cama e estava furioso, farejando cada canto do meu quarto. Depois de um tempo, ele restringe as buscas e fica obcecado pelo guarda-roupa. Eu demoro a despertar e a me dar conta de que o motivo daquele alvoroço era, muito provavelmente, um ser vivo. Ainda deitada, brinco de adivinhar qual é o bicho : talvez uma lagartixa ou uma barata. Mas no fundo eu sei que aquele nível de obstinação do meu cachorro só pode significar uma coisa: tem um rato no meu quarto.
01h46
Milu se mantém determinado a achar alguma coisa atrás do guarda-roupa. Corajosamente aponto a lanterna do celular para a fresta entre a parede e o armário, num cantinho que o Milu não consegue acessar. Não enxergo muita coisa porque a luz ofusca a minha visão. Continuo movendo a lanterna até que ela revela duas pequenas bolinhas pretas muito brilhantes, nem um pouco doces ou afetuosas, apontadas em minha direção. São olhinhos, penso. E fecho os meus próprios olhos sentindo um leve mal-estar percorrer meu corpo. Respiro e, rindo, penso: a decisão mais sensata agora é sem dúvida alguma abandonar a casa e deixar os olhinhos viverem aqui: vou bater em retirada.
01h55
Entro de pijama e chinelos no porão e tiro de lá de dentro a ratoeira que tinha comprado na última vez que um rato entrou aqui em casa. Naquela ocasião o Milu acabou por matá-lo, tornando a gaiola obsoleta.
02h10
Faço minhas malas, isto é, retiro do quarto todos os pertences necessários pra não precisar voltar a pôr os pés ali dentro tão cedo: roupa de cama, celular, cobertas, escova de dentes, kindle, meias, tênis, lentes de contato. Posiciono a ratoeira com um pedaço de queijo prato bem ao lado do cantinho do armário onde eu vira os olhinhos brilhantes. Desejo boa noite ao ratinho e fecho a porta. 🐭
02h21
Me instalo no sofá onde você dormiu por mais de um mês enquanto esteve hospedada aqui em casa. Começo a assistir Gilmore Girls pra tentar relaxar e conseguir dormir, mas sou sorteada com o episódio em que elas descobrem que a fundação da casa está tomada por cupins e que vão precisar de quinze mil dólares pra consertar tudo. Que relaxante!

03h30
Imploro ao Milu pra que ele, pelo amor de deus, pare de farejar cada centímetro da casa e fique quietinho no sofá. Espantado com a intensidade do meu desespero, ele acha por bem acatar meu pedido, mas se mantém em estado de alerta máximo, com as orelhas em pé e o focinho trabalhando. Pula do sofá de tempos em tempos, alarmado por minúsculos barulhinhos 100% inaudíveis aos meus ouvidos.
04h10
A essa altura já desisti de tentar controlar o Milu, que parece incorporado pelo espírito de seu antepassado lobo da estepe. Dou uma abridinha na porta do quarto pra verificar a ratoeira, que permanece intacta. Passo o resto da madrugada lendo e vendo séries. Eventualmente consigo cochilar até ser novamente acordada pelos saltos da minha Rebeca Andrade canina.
08h10
Desisto de tentar dormir. Lavo o rosto, escovo os dentes, ponho uma roupa e decido fazer aquilo que qualquer pessoa em sã consciência faria no meu lugar: pedir socorro pro meu pai. Pego o Milu e vamos juntos tirar o coitado da cama, enquanto o âncora de algum jornal matinal devia estar anunciando uma das manhãs mais frias do ano.
09h30
Volto pra casa trazendo comigo o Milu, meu pai e o Fernando, meu irmão. Vamos todos até a cozinha buscar vassouras. Entramos no quarto empunhando nossas armas de guerra. A ratoeira continua armada com o mesmo pedaço de queijo prato. Arrastamos a cama, a mesa de cabeceira e o guarda-roupas pra todos os lados. Milu fareja colérico a parte de trás do armário, justamente onde eu tinha visto os olhinhos brilhantes. Pedimos pra ele farejar as partes internas do armário, mas não há nada ali. Abrimos gavetas, vasculhamos tudo, até dentro dos meus sapatos. Nada. Nem sinal de rato.
10h00
Terminada a busca frustrada, meu pai e meu irmão vão embora, mas eu ainda continuo minha inspeção por algum tempo. Começo a achar que meus olhos podem ter me traído, e que na escuridão da noite, ainda meio sonada, eu possa ter inventado as bolinhas pretas atrás do armário. Mas aí me lembro do meu cão farejador lunático que passou a madrugada em estado de alerta. Concluo que, mesmo com portas e janelas fechadas, o rato deve ter dado um jeito de sair. Embaixo da janela há um buraquinho entre a parede e o piso. Fico me perguntando se ele é grande o bastante pra permitir a passagem de um ratinho bem pequenininho.
Epílogo
Terça-feira, 27 de agosto
08h46
Minha mãe me escreve pra saber se correu tudo bem durante a noite e eu respondo que sim.
12h55
Ouço a campainha e abro a porta para o meu pai, que veio trazer armadilhas pra ratos a serem estrategicamente distribuídas em regiões da casa às quais o Milu não tem acesso. Agora me sinto protegida.
17h12
É o último passeio do dia com o Milu. Ainda estou no quarteirão de casa quando vejo o rato da semana passada - aquele que tinha acabado de ser atropelado. Ele continua na mesma esquina, mas está um pouco mais achatado e sujo do que há sete dias. De alguma maneira, foi transportado do asfalto para o exato meio da calçada. Sou pega de surpresa e não há tempo hábil para um desvio. O Milu consegue realizar o desejo de farejá-lo desta vez.
Um beijo,
Gabi
Ri tanto! Mas, apesar da história boa, espero que o ratinho não volte a dar as caras por aí 😂