Carta #27 (ou meu máximo foi meu máximo, mas pareceu meu mínimo)
sobre demandas inalcançáveis
São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992, oito horas da manhã.
Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Então é isso, Gabi, coube a mim escrever a carta do dia primeiro de outubro e eu não seria eu se não fizesse essa piadinha. Minha carteirinha de fã dos Racionais seria confiscada. A Ana tímida de dez anos que olhava curiosa para os moleques que ouviam e cantavam as músicas do Sobrevivendo no Inferno sumiria da minha já abalada memória. Mas esta não é uma carta sobre o conjunto habitacional onde eu cresci, nem sobre a escola pública que eu frequentei. Eu não sei sobre o que é esta carta.
Eu não estou te escrevendo às oito da manhã, estou te escrevendo depois das dez da noite desesperada, torcendo para conseguir colocar algo aqui e não falhar na missão carta da semana. Porra, seria vacilo demais perder a oportunidade de mandar a carta do primeiro de outubro. Talvez eu devesse parar agora e clicar em enviar. Jogar para o mundo a piadinha e fingir que foi uma carta conceito. Mas não sou tão cara de pau assim, então o que me resta é me explicar.
Hoje é terça-feira e eu fui atropelada por tantas demandas que eu não fiz o horário de almoço. Esquentei a comida rapidinho e engoli em frente ao computador, respondendo mensagens. Aquela aula que eu disse que tinha e que por isso não conseguiria ir jantar com você e com a Jamine? Perdi no meio de tanto trabalho, vou ter que assistir a gravação depois. Minha janta? Pedi uma pizza e engoli uns pedaços enquanto terminava um arquivo que era para ter terminado ontem. Vamos falar sobre ontem? Vamos.
Comecei a semana achando que ia morrer. No domingo, fui a um samba e comi um maravilhoso caruru de Cosme e Damião. Minha noite foi muito divertida, a comida estava maravilhosa. Voltei para casa feliz, tomei aquele banho premium, botei minha camisolinha fresca e cochilei vendo seriado. Fui despertada por dores abdominais intensas. A verdade, minha amiga, é que por mais que eu ame caruru e toda a gama de comidas baianas bem temperadas, meu corpinho de paulistana é fraco. Eu achei que depois do que passei na minha viagem a Salvador eu tinha ganhado casca, resistência, estaria acostumada. Ledo engano. Fui brindada com um piriri absurdo. De suar frio. Da pressão cair e achar mesmo que ia apagar. Pronto, já estava me vendo desmaiando em casa sem conseguir chamar nenhum vizinho ou ligar para alguém porque, claro, também sou dramática. Fiquei ali lutando pela minha vida por cerca de uma hora no banheiro quando o enjoo venceu e botei tudo para fora. Consegui tomar um buscopan para ajudar com a cólica, outro banho para recuperar minimamente a dignidade e voltei para a cama. Trabalhei a segunda inteira fraca depois de uma noite de rainha no trono, mas os prazos são ingratos. Deveria ter tomado água de coco e descansado, mas passei o dia na frente do computador me hidratando entre um “salvar arquivo” e outro. Quer mais? Temos mais: além de tudo estou de TPM, o que fez com que tudo isso fosse acompanhado de choros esporádicos.
Acabou? Há mais.
Em algum momento, no meio da correria, eu tive que descer buscar uma encomenda. Não sei se você já reparou que a porta do elevador daqui fecha muito lentamente, pois então que no meu desespero de não perder tempo eu simplesmente puxei com tudo a porta. Fiz isso tão rápido e tão forte que não deu tempo de tirar meus dedos e eis que fechei meu indicador na porta do elevador. Estamos de parabéns. E de dedo inchado.
Estou há dois dias trabalhando como uma cachorra, entreguei muita coisa, mas a lista não diminui. Para fazer tudo isso, fui abrindo mão de coisas tipo comer com calma e longe do computador, encontrar as amigas por uma horinha pelo menos, responder as pessoas com alguma atenção, levantar da escrivaninha e ficar longe por, pelo menos, uma hora, fazer minha yoga diária. Não recomendo. Também não estou romantizando, minha sensação é de derrota mesmo. Me esforcei tanto, fiz tanto e não parece suficiente.
Me despeço na expectativa de que amanhã seja um dia melhor e que as coisas apenas passem a caber dentro do horário comercial. Vai depender de mim botar limite. Estou ferrada.
Não posso me despedir, ainda falta a imagem. Já sei.

Um beijo,
Ana