Carta #30 (ou resgatando a criatividade)
sobre carros antigos, obras de arte e a névoa do capitalismo tardio
Ana,
Esses dias apareceu na minha For You do Tiktok o vídeo de um cara que comprava um Gol velho, há mais de dez anos abandonado no quintal de uma casa, pra reformar. Ele começava mostrando a sujeira incrustada na lataria, depois jogava uns produtos químicos pra revitalizá-la. Então, seguia para um sem número de etapas da restauração do carro, realizando procedimentos dos quais eu nunca nem tinha ouvido falar. A reforma do Gol me prendeu tanto que passei quase uma hora assistindo aos vídeos relacionados à saga. Assisti à remoção dos bancos, à limpeza de toda a parte interna e do painel, à retirada das várias camadas de tinta velha, ao cuidado com a lataria, à limpeza da ferrugem, à pintura, à troca da lanterna e dos faróis, a revisão de cada parte do motor.
No parque onde levo o Milu pra passear, acontece de vez em quando, nos finais de semana, um encontro entre donos de carros antigos. Nesses encontros os carros, sempre belos e reluzentes, ficam estacionados lado a lado, na diagonal, enquanto seus donos orgulhosos conversam sobre o para-lama encontrado num desmanche no interior do estado ou sobre o friso original de fábrica de um veículo produzido em 1978. Deparar com essas cenas costumava gerar em mim certa estupefação. É claro que eu entendo a preferência estética pelos carros antigos, mas as demais particularidades dos praticantes desse hobby sempre estiveram distantes demais da minha realidade pra que eu as compreendesse.
Nesse nicho é imperativo, por exemplo, que você se identifique como um senhor de sessenta e tantos anos, que possua em sua casa uma enorme garagem onde possa enfiar tanto o seu carro antigo quanto o carro que de fato usa em seu dia a dia, que esteja disposto a passar os seus domingos, sem exceção, polindo a lataria do seu carro antigo, que todo o seu tempo livre seja dedicado à busca de peças para o seu carro antigo no Mercado Livre, que sinta enorme prazer em desfilar pelas ruas da cidade com seu carro antigo barulhento nas manhãs de sábado, que dedique alguns finais de semana para vangloriar-se de seu carro antigo para outros senhores de sessenta e tantos anos enquanto eles, por sua vez, vangloriam-se de seus próprios carros antigos, num ciclo infinito de adoração automotiva. Daí minha estupefação.
Mas meu breve mergulho por esse mundo me fez refletir. Embora eu não possa me considerar grande fã do assunto "carros”, sou fascinada por processos criativos. Fico absorvida sempre que tenho a oportunidade de contemplar o encadeamento de ideias dentro da cabeça de alguém que está criando, seja uma obra de arte, seja a busca por uma solução que permita adaptar a caixa de câmbio de uma Blazer a um Opala. Criatividade é a capacidade de ser inventivo, de inovar. O que me hipnotizou nesses vídeos do Gol GTI amarelo é provavelmente a combinação entre a curiosidade pela técnica, que definitivamente não faz parte do meu repertório, e a possibilidade de acompanhar a concatenação de ideias dentro da cabeça de um outro ser humano.
Venho trabalhado muito e feito poucas pausas há meses. Ultimamente me dei conta de que essa maneira de viver vinha me deixando meio triste, com um certo vazio existencial. Eu deixei de ter vontade de ler, vontade de levar o Milu no parque onde acontecem os encontros dos donos de carros antigos, vontade de ouvir música, de encontrar amigos. Quando me dei conta disso, entendi que alguma coisa no meu quotidiano precisava mudar.
Resolvi então mudar as minhas manhãs, que ultimamente vinham sendo consumidas com e-mails, orçamentos, contas a pagar e enrolações sem fim. Tomei a decisão de que todos os meus dias precisavam começar com duas horas inteiras de trabalho criativo, mesmo que eu estivesse com vinte mil prazos acumulados. Eu não olharia marcações na agenda, não responderia mensagens, não terminaria tarefas em aberto do dia anterior. Eu simplesmente sentaria na minha prancheta e dedicaria meu tempo à criação. Seriam duas horas diárias dedicadas a pesquisar referências, criar esboços, elaborar e executar projetos, estudar técnicas, compor paletas de cor. Todas as outras tarefas mais burocráticas que também fazem parte da minha vida de autônoma precisariam ser distribuídas pelo restante do dia.
Já faz duas semanas que impus essa nova regra à minha rotina e tenho conseguido cumpri-la até mesmo nos dias em que acordei um pouco mais tarde ou quando uma lista interminável de tarefas me aguardava pela frente. Não me adianto em proclamar vitória, mas por enquanto tem sido muito bom. Sinto que iniciar as jornadas de trabalho lubrificando minha criatividade - há muito tempo emperradinha, diga-se de passagem - é como derramar óleo no carburador pra fazer um motor engrenar. Tem sido interessante observar, por exemplo, que depois desse tempo dedicado à criação, torna-se mais fácil me concentrar em atividades mais mecânicas, repetitivas ou burocráticas. Além disso, venho percebendo um fenômeno interessante: depois de uma jornada de trabalho típica, quando, lá pelas sete, já respondi e-mails, já atualizei as redes sociais, já editei vídeos, já terminei de empacotar encomendas e já levei os pacotes ao correio, sinto vontade de me debruçar novamente sobre a prancheta pra desenhar ou pintar. Só uns minutinhos, pra relaxar.
Há muito tempo não sentia uma vontade tão genuína de criar. Tenho tido um turbilhão de ideias e urgência em executá-las. Isso não quer dizer que antes eu não desenhasse ou pintasse, já que esse, afinal de contas, é o meu trabalho. A diferença é que ultimamente tenho sentido vontade de fazer essas coisas simplesmente pelo prazer de fazê-las. Esse prazer esteve encoberto por uma névoa persistente, que eu gostaria de chamar aqui de névoa do capitalismo tardio. É difícil tirá-la da frente, porque ela é obstinada e espaçosa: volta a ocupar cada espaço da mente sempre que nos distraímos e precisa ser constantemente removida. A persistência em remover quotidianamente essa névoa é, portanto, uma atividade de resistência. Uma resistência mais ou menos parecida com a de alguém que decide, em 2024, comprar um carro fabricado há mais de trinta anos e passar anos os meses seguintes se dedicando a reformá-lo até poder, finalmente, desfilar com ele por aí numa manhã de sábado.
Um beijo,
Gabi