Ana,
Queria começar dizendo que adorei receber, na última carta, a foto de uma das páginas do seu antigo sketchbook. Isso de você ter mandado a timidez catar coquinho me fez pensar numa conversa que tive esse fim de semana com uma vizinha de bairro (com quem costumo interagir de longe, já que ela tem uma pitbull que o odeia o Milu). Na manhã desse último domingo ela estava sem a cachorra, então aproveitamos pra caminhar juntas por alguns minutos. Soube que ela se chamava Lila (nunca vou me esquecer desse nome, por causa da personagem da Ferrante) e que era proprietária de uma empresa de confecção de bolsas personalizadas para equipes de filmagem, pochetes pra maquiadoras e malas para tradutores simultâneos, entre outras coisas extremamente específicas. Eu contei que era ilustradora, e aí ela me disse que adoraria desenhar também, mas só o que sabia fazer eram desenhos técnicos que se transformavam depois em moldes, muitas vezes bem complexos, cheio de partes intrincadas, das peças que ia costurar. Esses desenhos, segundo ela, cumpriam seu papel, mas ela seria incapaz de desenhar artisticamente. Eu ponderei que tanto um quanto outro eram desenho, e que o que distanciava maus desenhistas de bons desenhistas era somente a prática. Mas Lila insistiu no fato de que havia o tal do dom para o desenho e que, infelizmente, ela tinha nascido sem ele.
Nos despedimos e continuei o passeio com o Milu pensando no dom do desenho. É claro que algumas pessoas têm mais habilidade que outras pra desenhar, assim como tem gente que nasceu com enorme facilidade pra fazer cálculos de cabeça, tocar violão ou jogar futebol. Mas quando alguém me diz que eu tenho o dom do desenho, não faz a mínima ideia da quantidade de horas que já passei na vida desenhando.
Na semana passada terminei de ler o Ladies Drawing Night, que descreve encontros semanais promovidos por três ilustradoras, Julia Rothman, Leah Goren e Rachel Cole. Na introdução do livro elas dizem algo muito parecido com o que mencionei na minha carta #30: que apesar de estarem acostumadas a passar várias horas desenhando e pintando diariamente, sentiam falta de momentos de verdadeira liberdade criativa, em que pudessem experimentar por pura diversão, sem nenhuma expectativa em relação ao resultado. Então instituíram os encontros.
Toda semana, elas se muniam de comidas e bebidas gostosas pra passar algumas horas debruçadas sobre uma mesa repleta de papéis e um monte de materiais artísticos. Enquanto estivessem ali, podiam se permitir usar pincéis mais grossos do que os de costume e explorar tintas diferentes das que estavam habituadas a aplicar em seus trabalhos. Os temas também eram os mais diversos: animais, moda, trens, rostos, plantas, paisagens - tudo o que a imaginação inventasse. Como o foco desses encontros era o processo, elas muitas vezes detestavam o resultado do que tinham produzido. Mas não havia problema algum nisso, já que nenhum desses desenhos ia ser usado pra pagar o aluguel. Ainda assim, algumas dessas experimentações davam tão certo que acabavam se transformando no início de um projeto profissional.
As noites de desenho também eram uma ótima oportunidade pra pôr o papo em dia sobre o trabalho e a vida pessoal. De vez em quando, uma das participantes estava passando por maus bocados e aquele era um momento perfeito pra desabafar e receber um abraço das amigas. Em outras noites, concentradas em suas atividades, passavam horas desenhando e pintando em silêncio. Me parece uma combinação muito equilibrada entre sociabilidade e introspecção.

Esse livro tinha ficado na minha fila de leitura por um bom tempo, mas eu resolvi começar a lê-lo na semana passada porque tenho pensado na ideia de promover encontros regulares parecidos com esses aqui no meu ateliê. Faz tempo que tenho vontade de reunir gente pra socializar e exercitar a criatividade. Acho que estamos todos precisando de umas doses frequentes dessas duas coisas pra dissipar um pouco dessa névoa do capitalismo tardio da qual falamos nas nossas últimas cartas.
Ainda não sei exatamente como vai funcionar, mas a ideia é propor um espaço regular de livre expressão da criatividade, sem apego aos resultados. Talvez participar desses encontros seja justamente o que falta pra pessoas como a minha vizinha Lila, que estão acostumadas a fazer muitas coisas dificílimas, mas por alguma razão acham que são incapazes de desenhar.
Aliás, quem sabe as minhas noites de desenho, junto com as aulas de costura, não te ajudam na missão de trazer pra vida um pouquinho de brincadeira?
Termino minha carta com uma novidade: estou oficialmente inscrita num curso de meditação Vipassana que acontecerá entre o fim desse ano e o início do próximo. Eu venho aventando a possibilidade de participar de um desses retiros há meses e finalmente consegui concretizar a ideia.
Acho que você deve se lembrar mais ou menos de como funciona o Vipassana por causa do livro Ioga, do Emmanuel Carrère. Serão dez dias com voto de silêncio, acordando às 4h da manhã e meditando em torno dez horas por dia, com alguns poucos intervalos. Lá não poderei usar celular, nem computador, nem câmera fotográfica. Também não vou poder ler livros, fazer anotações ou desenhar. Poderei caminhar, mas não correr ou fazer qualquer tipo de esporte.
A impressão que tenho é a de que estarei num ringue de luta livre: eu versus minha mente. Espero sair do ringue vencedora, mas de qualquer forma tenho certeza de que essa será uma das experiências mais desafiadoras da minha vida. Estou muito animada.
Um beijo
Gabi
Ps: Hoje é aniversário da minha mãe, leitora assídua destas cartas. Parabéns, mãe! <3
Te acompanho no Instagram há um tempinho, amo as coisas que você cria, principalmente as cerâmicas! Essa é a primeira carta que leio e... SIM, esses encontros para desenhar podem ser uma maravilha! Tive experiências assim na faculdade de arquitetura, com amigos de bobeira, em um clube de desenho, e todas foram muito boas, mesmo que os desenhos não dessem "certo". Sinto muita falta de participar de encontros assim, despretensiosos e sem a pressão de precisar produzir. Quanto ao retiro, achei uma loucura (boa) e estou muito curiosa pra saber como será sua experiência!
Que delicia de carta, já quero montar as noites de criatividade aqui e não consigo me imaginar capaz de fazer o retiro. Já quero saber como você voltou de lá!