Ana,
Depois de um merecido recesso, venho por meio desta reinaugurar nossa troca de cartas. O texto que vem a seguir é um relato sobre o curso de dez dias de meditação Vipassana que mencionei no fim do ano passado, na minha carta #32.
Dia 0
Acordo ansiosa no dia 27 de dezembro e termino de arrumar a bagagem. É relativamente fácil fazer as malas quando se está indo para um lugar em que não é permitido ler, escrever, desenhar ou praticar esportes. Depois de deixar o Milu no hotelzinho, busco a Jamine na casa dela. De lá seguimos pra estação de metrô onde nos espera uma outra moça pra quem eu havia oferecido carona pelo site do retiro.
Dirijo por mais ou menos uma hora até Santana do Parnaíba. Na recepção, entrego meu celular. Em troca, recebo um formulário pra preencher. Uma das voluntárias informa o número do meu quarto. Vou arrastando minha mala de rodinhas por um caminho cimentado, sobre o gramado bem aparadinho, que me conduz ao alojamento. No mural de cortiça afixado ao lado da porta está o cronograma que seguiríamos pelos próximos dez dias:
4:00 Sino para despertar
4:30-6:30 Meditação na sala de meditação ou em seu quarto
6:30-8:00 Café da manhã e descanso
8:00-9:00 Sessão de meditação em grupo na sala de meditação
9:00-11:30 Meditação na sala de meditação ou em seu quarto
11:30-12:15 Intervalo para o almoço
12:00 -13:00 Descanso e entrevistas com o professor
13:00-14:30 Meditação na sala de meditação ou em seu quarto
14:30-15:30 Sessão de meditação em grupo na sala de meditação
15:30-17:00 Meditação na sala de meditação ou em seu quarto
17:00-18:00 Pausa para o chá
18:00-19:00 Sessão de meditação em grupo na sala de meditação
19:00-20:15 Palestra do professor na sala de meditação
20:15-21:00 Sessão de meditação em grupo na sala de meditação
21:00-21:30 Horário para perguntas na sala de meditação
21:30 Hora de se recolher para seu quarto – Apagam-se as luzes
Meu quarto é simples, mas agradável, e tem dois beliches. Às 18h ouço o sino tocar pela primeira vez e vou até o refeitório onde serão dadas as instruções sobre os próximos dias. Somos apresentados aos gerentes que, uma na ala feminina e o outro na masculina, serão as únicas pessoas com quem, além do professor, poderemos nos comunicar. Logo em seguida tem início a segregação entre os cinquenta alunos e as cinquenta alunas (nos encontramos no salão de meditação, mas os alojamentos e refeitórios são separados) e também o nobre silêncio.
Dia 1
A meditação matinal demora a passar. Fico lutando contra o sono, sem sucesso. Acordo sobressaltada no fim do cântico e vou direto pro refeitório. Meu lugar na mesa fica de frente para uma janela e está identificado por um número, que é o mesmo da minha cama.


De volta à sala de meditação, aprendemos Anapana, técnica em que se concentra a atenção na respiração exatamente da forma como ela se dá, sem tentar interferir no processo. Logo é hora de almoçar. Gosto da comida, mas não gosto muito de comer sem nenhuma fome, que é o que acontece quando você acabou de se entupir de pão com geleia.
Passo o dia sentindo um sono descomunal, dormindo em vez de meditar. Consigo me concentrar em uma inspiração, em uma expiração e… pronto, já estou sonhando novamente. Tenho pesadelos horrorosos com animais cortados ao meio e pessoas deformadas fazendo caretas.
Às 17h é hora do chá. Estou faminta, mas só tenho direito a duas frutas, que saboreio devagar. A hora da palestra, à noite, é o único momento em que consigo me manter acordada no salão de meditação. Às 21h30 deito na cama e, como se não tivesse acabado de passar o dia inteiro dormindo, apago imediatamente.
Dia 2
Hoje minha dose cavalar de café solúvel do café da manhã consegue me manter desperta. Talvez minha falta de sono também se deva ao fato de que quase todas as partes do meu corpo, desacostumado a passar tantas horas sentado, estão doendo.
Pelo jeito eu não sou a única a sentir dores: um dos meus vizinhos no salão de meditação empilha uma quantidade realmente inacreditável de almofadas antes de se sentar, de tal modo que seus joelhos ficam dobrados num ângulo de 90 graus, como se estivesse sentado numa cadeirinha. Dou a ele o apelido carinhoso de “Princeso da ervilha”.
Dia 3
A essa altura estou acostumada à rotina. Às quatro acordo com o sino. Espero que ele toque uma segunda vez antes de me levantar, simulando o botão de soneca do despertador. Me visto, escovo os dentes, percorro no escuro o caminho até o salão de meditação. Largo meus chinelos na antessala e me acomodo na almofadinha. Passo a primeira hora lutando contra o sono. A segunda também. Vou faminta pro refeitório. Como demais e bebo aproximadamente meio litro de café solúvel. Uso o restante da pausa pra tomar sol na grama. Mais meditação. Almoço às onze sem nenhuma fome. Ao sair do refeitório dou início a uma sequência de afazeres que buscam preencher a pausa do meio do dia, a saber: 1. caminhar pela trilha do mato o mais devagar possível em direção ao alojamento, 2. passar minuciosamente o fio dental olhando a paisagem, 3. escovar vagarosamente os dentes, 4. lavar uma peça de roupa no tanque, 5. verificar o nível de secagem das minhas toalhas no varal, 6. lixar as unhas, 7. observar de perto um item da natureza (inseto, flor ou coisa que o valha) 8. tomar banho, já que depois do meio dia não costuma haver fila no banheiro 9. encher minha garrafinha de água, 10. passar hidratante, desodorante e repelente. Pronto, já é hora da meditação. No chá da tarde, pra dar a impressão de que estou jantando, amasso as bananas e misturo com leite de aveia. Na hora da palestra me dou ao luxo de empilhar minhas almofadas tal qual o Princeso da Ervilha. Mais uma última horinha de meditação e… cama!

Dia 4
Chego às 4h30 no salão de meditação e sou recepcionada por um um cartaz que anuncia: Hoje é dia de Vipassana! Até então, tínhamos praticado apenas Anapana, mas naquele dia aprenderíamos uma técnica nova.
Para explicar de maneira bastante breve, praticar Vipassana é observar as sensações do corpo e manter-se equânime em relação a elas. Essa foi a técnica usada por Sidarta Gautama, o Buda, para alcançar a iluminação, e ele se pôs a ensiná-la até por volta de 483 a.C., ano em que se estima o fim de sua vida.
Muito tempo mais tarde, no século XX em Mianmar, acometido por horríveis enxaquecas e prestes a viciar-se em morfina, Satya Narayan Goenka fez um curso de Vipassana e livrou-se completamente das suas crises. Depois de treinar por quatorze anos, tornou-se professor da técnica em 1969. Desde então, passou a disseminá-la no formato que existe hoje em diversas regiões do mundo.
Durante o curso, ouvimos muitas vezes pelos alto-falantes a voz de Goenka orientando as meditações. À noite, escutamos em português a tradução de suas palestras, que costumam conter anedotas engraçadinhas e têm como objetivo nos manter firmes na decisão de terminar os dez dias de retiro.
Depois da palestra e da última meditação da noite, vou para o alojamento e me sento na parte de fora. Fico até umas 22h30 vendo as luzes dos fogos de artifício no céu. Depois entro no quarto devagarinho, pra não acordar ninguém. É a noite do 31 de dezembro.
Dia 5
Dia primeiro de janeiro. Começamos a fazer três sessões diárias de Adhiṭṭhāna, ou firme determinação, nas quais permanecemos meditando por uma hora sem mudar de posição. Nessas sessões, sinto muitas dores e formigamentos, mas atinjo um estado de concentração muito profundo. Às vezes meu corpo inteiro se põe a tremer e depois a suar. Não me espanto muito porque as palestras noturnas alertavam sobre aquela possibilidade. Vejo o mesmo acontecer com muitas pessoas ao meu redor, que se levantam afobadas pra tomar um ar lá fora.
Sempre que preciso respirar, caminho pela trilhazinha ao lado do rio. Pra me distrair, gosto de pensar no que vou fazer ao voltar pra casa, mas hoje não consigo. É como se houvesse um bloqueio me separando da minha própria vida.
Às 21h30 me deito na cama, mas logo percebo que será impossível dormir. Me sinto elétrica, meu parece estar ligado a uma tomada. O alto da minha cabeça e o centro do meu peito pulsam e doem. Também tenho dor de garganta. Fico algumas horas tentando dormir, mas é impossível. Decido calçar os chinelos e ir lá pra fora.
Fico sentada olhando a chuva e começo a cogitar abandonar o retiro no dia seguinte. Mas esse cenário não me anima: não tenho vontade de ir para casa. Tento me lembrar das coisas boas que me aguardavam em São Paulo. Penso na sensação de voltar pra casa, mas é estranho: ela já não parece ser minha casa. Tento me lembrar do prazer de realizar meu trabalho criativo: desenhar, pintar e criar peças de cerâmica, coisas que eu gosto tanto de fazer, mas tudo isso parece totalmente sem importância. Por fim, começo a elencar uma a uma as pessoas que amo. Fico feliz ao constatar que o sentimento por elas permanece, mas é como se todo o vínculo entre nós tivesse deixado de existir. Todas as minhas referências, tudo aquilo que caracterizava minha identidade, todas as coisas e pessoas que representavam algum tipo de conforto: tudo tinha caído por terra.
Tenho a impressão de que o que estou sentindo é irreversível. Sinto raiva e choro muito. Tomo um pouquinho de chuva com os pés descalços e finalmente consigo me acalmar ao ouvir meu próprio pensamento repetir muitas vezes que aquela experiência temporária e que fazia parte do processo. Vou pra cama e durmo duas ou três horas antes do toque do sino.
Dia 6
Marco uma entrevista com o professor no primeiro horário. Sobre a falta de sono, ele me diz que está contente em saber: “Isso quer dizer que você está trabalhando direitinho”. Então recomenda que eu aproveite a insônia pra meditar: "Buda só dormia duas horas por dia". Ele escuta também o meu relato sobre a crise existencial e considera tudo absolutamente normal, parte do processo de purificação da mente. Pergunto aflita se aquilo ia passar. Ele me garante que sim. “Tem certeza?", insisto. “Certeza absoluta”.
É claro que, apesar do conselho do meu professor, não tenho a menor intenção de meditar durante toda a noite. Em vez disso, passo a madrugada cultivando a minha ansiedade por não conseguir pegar no sono. Só adormeço umas três horas antes de ser despertada pelo sino.
Dia 7
Na rampa que dá acesso ao refeitório há uma aglomeração. Algumas mulheres sorriem e apontam para a mata. Me aproximo e descubro que estão admirando uma enorme cobra pendurada nos galhos de uma árvore. “Uau!” sussurro baixinho, sem conseguir me segurar.
Algumas horas depois, quebro o silêncio outra vez. Peço à Jamine um remédio que tenha efeito sonífero. Ela me dá um anti-histamínico e naquela noite eu durmo feito um bebê das 21h30 às 4h.
Dia 8
Estou um pouco mais alegre por ter dormido bem. Na volta do chá da tarde, lá pelas 17:30, encontro no batente da porta de entrada do alojamento uma mariposa peludinha da família Megalopygidae. Ela parece um Pokemon vestindo um suéter listrado. Me dou conta de que há muitas mariposas espalhadas por toda a parede e fico vários minutos olhando pra elas, frustrada por não ter um papel e um lápis. Quando me dou conta de que voltei a sentir vontade de desenhar, entendo que o pior já passou: estou de volta!
Dia 9
Vejo duas mulheres, em dois momentos diferentes do dia, fazendo cálculos com os dedos das mãos. Tenho certeza de que estão contando os dias para o fim do retiro. Sei disso porque faço a mesma coisa diariamente, várias vezes ao dia.
Já não aguento mais ouvir a voz do Goenka repetir “Start again, start again…” sempre que voltamos à sala de meditação depois de uma pausa. Não aguento mais meditar. Não aguento mais nem mesmo o café da manhã. Mas agora falta pouco.
Dia 10
O décimo dia é um bálsamo. No meio da manhã, somos autorizados a interromper o nobre silêncio. Conversar é maravilhoso. Um moço simpático nos explica como toda a organização sobrevive exclusivamente por meio de doações e do serviço de trabalhadores voluntários, o que permite que os retiros sejam totalmente gratuitos. Organizam-se as caronas e o mutirão de limpeza. Somos convidados a conhecer o restante do terreno, que havia sido doado por um aluno e contava com muitas áreas de preservação ambiental.
À noite, fico até tarde conversando com minhas colegas de alojamento. Uma delas é professora de artes, a outra psicóloga, a outra palhaça de circo. Duas arquitetas se juntam à festa. Depois de dez dias convivendo juntas, de maneira tão intensa, tínhamos construído uma intimidade difícil de descrever.
Dia 11
Meditamos pela última vez antes de fazer uma faxina no quarto e no alojamento. Recebo de volta o meu celular e tomo meu café da manhã enquanto observo o Whatsapp carregar as mensagens que ficaram acumuladas nos últimos dez dias. Nada de importante aconteceu enquanto estive offline.
No caminho de volta pra São Paulo, dirijo em meio aos lunáticos da Marginal Pinheiros como quem faz um passeio bucólico num vilarejo do interior. Chegando em casa, num farol, meu carro é quase atropelado por uma pedestre hipnotizada pela tela do celular.
Em casa descubro que um pedaço do teto do ateliê caiu. E que o roteador não está funcionando. E que tem água da chuva infiltrada na parede do banheiro. Nada disso me afeta muito e vou correndo buscar o Milu no hotelzinho. Ele está de banho tomado e me recepciona com pulos e lambidas. Como é bom voltar pra casa.
Pós-retiro
Nos primeiros dias depois do retiro, continuei sentindo um bem-estar sem precedentes. Algo que eu realmente nunca tinha vivenciado antes. Aos poucos essa sensação foi se dissipando. Não é que agora eu me sinta mal. É só que eu voltei a estar consciente do peso da realidade ao meu redor.
Nas últimas palestras que escutamos no curso, Goenka sugere que, em casa, meditemos duas vezes ao dia: uma hora pela manhã e uma hora à noite. Venho me esforçando pra seguir parcialmente a recomendação.
Meditar tem se provado um antídoto milagroso para um problema que vinha se tornando cada vez mais frequente na minha vida: a insônia. Desde que voltei do retiro, passei a dormir bem. Bem como não dormia há, sei lá, uns dez anos. Minha capacidade de concentração também aumentou consideravelmente.
Tenho gostado de preparar e comer as refeições em silêncio, olhando a janela, como fazia no refeitório. Mas quanto mais o tempo passa, maior é o esforço pra continuar evitando o barulho (dentro e fora da minha cabeça). Veremos como vai se dar essa empreitada em 2025.
Um beijo,
Gabi
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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Eu não aguento esperar até terça para dizer aqui o quão feliz estou porque nossas trocas de cartas voltaram ❤️
Ah eu bem que percebi que vc deu uma sumidinha mesmo.Sempre tiro um tempinho em silêncio no meu dia,não necessariamente em determinada posição corporal,mas de fato faz muito bem.Obrigada por dividir com a gente (inclusive fotos pq sou mto curiosakkkk) ,bem ja disse várias vezes que amo vcs,o trabalho de vcs e as cartas tmbm.