Ana,
Foi meu irmão mais novo que me ensinou a andar de bicicleta quando éramos crianças. Estávamos passando as férias no sítio do meu avô, e pelo visto havia chovido muito. Eu já me aventurava a pedalar sem o apoio das rodinhas, mas foi ali que decidi que tinha chegado a hora. Pratiquei inúmeras vezes pela descida de uma estrada de terra enlameada, cheia de poças. Enquanto me dava instruções, o Camilo tentava segurar a bicicleta, mas isso não me impediu de cair na lama inúmeras vezes. Demos muitas risadas juntos. Quando comecei a me sentir segura, passei a tirar os pés do pedal e a descer a ladeira de olhos fechados – uma atitude que, em retrospecto, parece meio kamikaze da parte do meu eu juvenil
.
Você me disse na sua carta que, além da escalada, pedalar tinha te trazido muitas vezes a tal sensação de liberdade. Fiquei pensando em como me senti livre naquelas descidas enlameadas de bicicleta. Talvez justamente porque não tivesse a menor ideia do que estava fazendo, e ainda assim, tenha escolhido fechar os olhos.
Durante a infância, se me perguntavam o que seria quando crescesse, respondia sempre: pintora e escritora. Depois, na adolescência, essa resposta mudou muitas vezes, conforme eu desenvolvia novos interesses, passando da arquitetura à engenharia genética, da veterinária à nutrição. Mas no fim das contas a profecia meio que se cumpriu: minha primeira faculdade foi Letras e, uns anos depois de me formar, resolvi cursar uma segunda graduação em Artes Visuais.
Como eu era uma criança que adorava desenhar, num dos meus aniversários ganhei de presente dos meus avós maternos uma visita ao MASP. Foi um passeio delicioso. No ano seguinte, o presente foi um livro: 100 famous paintings. Ele era uma seleção de telas cronologicamente organizadas, acompanhadas de textos explicativos que esclareciam seu contexto e importância pra história da arte. Eu me lembro de folhear essas páginas com muita frequência, ainda que não entendesse inglês.
Houve uma fase na minha infância em que fiquei bastante obstinada em aprender a desenhar cavalos. Nessa época, a página 65 desse livro foi uma de minhas favoritas, porque continha a reprodução de uma tela do século dezoito, de George Stubbs. O texto que acompanha a imagem fala sobre como Stubbs retrata os animais da cena com a mesma atenção dada às figuras humanas. Há um cachorro no canto direito e, ao longo da tela, três cavalos elegantemente dispostos. Repare como o rosto de cada um deles é cuidadosamente representado, quase como se não houvesse hierarquia de importância entre humanos e animais. Os elementos estão muito harmoniosamente distribuídos, é uma tela gostosa de se olhar.
Hoje, enquanto pesquisava sobre o tal do George Stubbs, fiquei sabendo que o pintor dessa tela é uma grande referência no mundo da pintura de cavalos. Uns anos depois de ter pintado As famílias Milbanke e Melbourne, Stubbs publicou um livro chamado Anatomy of the horse, resultado de mais de um ano dissecando a carcaça de cavalos e estudando cada camada de sua anatomia. Pois é, se tem uma coisa que o Stubbs se propôs a fazer na vida dele foi aprender a desenhar cavalos. Quanto a mim, continuo sem ter aprendido.
Nesse fim de semana, na exposição "Caipiras" que está na Pinacoteca, havia alguns quadros retratando cavalos. Num deles, um cavalo curva o pescoço sobre o corpo de um homem morto. O homem parece ter cometido suicídio porque segura uma arma e tem sangue escorrendo pela cabeça. O que me fez gostar da tela não é propriamente a pintura, mas seu título: “Fim de Romance". É um título bonito e, ao mesmo tempo, quase engraçado, porque ao categorizar a cena acaba tirando a sua carga dramática.
Aproveito, aliás, o fim de romance, pra declarar também o fim desta carta, que fica aguardando uma resposta sua na terça que vem.
Um beijo,
Gabi
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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