Gabi,
Eu tenho uma espécie de ritual matinal de dias de folga que eu chamo de bolinho de sono. Essa prática consiste em acordar sem despertador, o que na minha rotina de sono significa algo entre 7h40 e 8h15, abrir as janelas para o sol entrar no quarto, colocar um disco (quando não prefiro silêncio), preparar um café da manhã com cuidado e voltar para cama. Tomo meu café enrolada nos lençóis, pego um livro, cochilo entre a leitura e um disco e outro, e, assim, passo umas duas boas horinhas preguiçosas. Como a prática leva à perfeição, eu mantenho a disciplina do bolinho de sono regularmente aos domingos.
Escrevo esta carta numa terça-feira de carnaval vagarosa, depois de minhas horinhas de preguiça. Acordei lembrando da nossa conversa abobada de ontem. Ainda dou risada quando lembro da cena de eu apertando a argila e percebendo que estava parecendo um bicho-preguiça. Olhei as fotos hoje de manhã e continuo achando que, sim, sem me dar conta fiz um bicho-preguiça e continuo achando que descobrimos meu verdadeiro espírito animal.

Como você bem sabe, meu aniversário está logo aí. E, com ele, vem o já tradicional draminha da aniversariante. Quero viajar no final de semana do meu aniversário? Quero fazer uma festa e chamar muita gente? Um jantarzinho só para as melhores amigas? Faço uma comemoração com minha família? Faço várias pequenas comemorações com os grupinhos separados? Vamos para um bar ou encho minha casa? Melhor não fazer nada? O que eu tô fazendo da minha vida???? Como cheguei até aqui?????
Além do drama exagerado na decisão de comemorar ou não, fico extremamente sensível. Ontem, enquanto fazia uma receita de carne moída da Rita Lobo que eu adoro e me garante muitas marmitinhas para a semana, eu chorei quando senti o cheiro do refogado. Juro que essa cena patética aconteceu. E, não, não era de tristeza. Eu apenas me emocionei com o cheiro de cebola e alho no azeite.
Dramas e sensibilidade aflorada à parte, nesse período eu, a diferentona, ninguém nunca na história da humanidade, fico obsessivamente repassando vários fatos da minha história, minhas escolhas e as certezas que tenho sobre mim. O resultado disso é que descubro umas coisas tanto quanto me confundo sobre outras.
Na sua última carta, você contou sobre a profecia de infância que se cumpriu: você cresceu e hoje escreve e pinta. No meu caso, a profecia não foi verbalizada, ela só sempre esteve lá. Não me lembro se já contei esta história: quando eu tinha por volta dos meus doze anos, eu escrevia meus próprios livros didáticos. Depois que eu entendia determinado conceito, eu não me conformava com a maneira que aquilo era exposto no livro, discordava dos exemplos, achava que tinha um jeito mais simples de explicar aquele ponto. Então, eu pegava um caderninho de brochura e ia refazendo o livro, mudava as partes da explicação que achava inadequadas, procurava outros exemplos e, aos poucos, escrevia o meu livro. Não fazia isso só com Língua Portuguesa, eu, atrevida para uma garotinha claramente das humanas, me arriscava em escrever meus livros de Matemática também.
Naquela época, eu também escrevia umas fanfics (ainda que não chamava assim). Passava tardes inteiras reescrevendo os livros que eu gostava de modo a me inserir na história. Não necessariamente como protagonista, mas cumprindo algum papel na narrativa e “corrigindo” o que eu não gostava na história original.
Eu nunca disse que seria editora e tradutora quando crescesse (qual criança responderia isso?), mas, no final das contas, meus dias e minhas escolhas foram me conduzindo pelo caminho da escrita. Hoje, passo boa parte das minhas horas quebrando a cabeça para criar livros, escrever roteiros e traduzir.
Voltando ao espírito animal, eu costumava responder que o meu era um gato. Sou ágil e arisca. Não costumo deixar as pessoas chegarem perto demais, mas, quando eu quero, me derreto em dengo e derrubo todas as minhas barreiras. Não faço o que não quero, sou teimosa, ninguém me dobra em uma briga e, quando me dou conta de que alguma coisa não era como eu queria, meu impulso é fugir e me esconder. Com o tempo, aprendi a controlar o impulso da fuga, mas ainda falho em controlar o impulso de me isolar num canto seguro.
Ontem, na nossa conversa abobada, você falou que o espírito animal não necessariamente era algo com o que a gente se identificava, que podia ser algo que nos equilibrasse, que precisássemos. Eu falo rápido, meus movimentos são ágeis e ando por aí sorridente e em disparada, mas uma pessoa que criou e pratica regularmente o bolinho de sono talvez não seja assim tão distante de um bicho-preguiça. Vai ver meu espírito animal era como a escrita, eu só não percebia em mim.
Esses dias você me disse que desde que mudei para cá tudo que eu falo com certeza que não vou fazer eu acabo fazendo e gostando. Espero que, ao completar meus 38 anos, eu continue derrubando essas minhas certezas. Tem sido divertido.
Beijos,
Ana
Quem assina este texto é Ana Paula Girardi, editora de material didático, tradutora do espanhol e, às terças-feiras, também escritora.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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