Ana,
Parece que atingimos um marco importante: chegamos à quadragésima Carta n’Amoreira. Foram vinte textos meus e vinte textos seus, e eles têm sido lidos por nossos mais de 500 assinantes. É muito bom ver essa jornada ganhando corpo.
Quando você teve a ideia de começar esta troca, no final de 2023, ainda morava em Brasília. A proposta era de que fossem textos públicos, em formato de newsletter, enviados semanalmente. Eu topei tentar botar aquilo em prática e a sua carta-convite chegou nos últimos dias de novembro, como uma espécie de episódio piloto do universo epistolar. Nela, você falou sobre a sua vontade de escrever criativamente e relembrou algumas das primeiras vivências que construíram o início da nossa amizade. Entre elas, estava a da amoreira:
Sem combinar (mesmo porque nessa época nem existiam smartphone e whatsapp), a gente acabava se encontrando nas amoreiras em frente à biblioteca. Se a gente estivesse quinze ou vinte minutos atrasadas para a aula, a gente entrava. Se o atraso era de quase meia hora, a gente decidia que não valia mais a pena (socorro, né, a aula tinha uma hora e quarenta, éramos duas caras de pau).
Eu adorava sentar naqueles banquinhos em frente à biblioteca da FFLCH pra bater papo nos intervalos e, claro, matar algumas das aulas que, convenhamos, não nos acrescentavam grande coisa. Pra mim, um exemplo clássico de aula ruim era o semestre inteirinho de Latim que tive que assistir no primeiro ano: ministrado por um professor uruguaio em portunhol.
É verdade que passamos muitas manhãs e tardes sentadas naqueles banquinhos matando aula, mas também foi ali que estudamos para as provas de tupi antigo, fizemos trabalhos de sociolinguística e discutimos os livros que o Jorge de Almeida, de introdução aos estudos literários, foi inserindo na nossa vida. Livros que devorávamos todos os dias enquanto atravessávamos a cidade, espremidas num ônibus Butantã-USP lotado de estudantes.
As amoreiras eram nosso ponto de encontro: ali nos reuníamos antes do almoço no bandejão central ou de uma sessão de estudos nas mesinhas silenciosas do prédio da Filosofia. Era ali naquele gramado que nos sentávamos pra ouvir alguém tocar violão depois da aula. Com sorte, entre setembro e novembro, ainda conseguíamos disputar umas amoras maduras com os outros frequentadores do campus. Por isso, escolher o nome da nossa newsletter nem foi uma tarefa tão difícil assim.
Depois da sua primeira carta, minha resposta demorou vários meses pra chegar - e não por falta de vontade. Eu estava tão travada que simplesmente não conseguia escrever. Como você sabe, passei vários anos corrigindo dissertações de alunos em cursinhos pré-vestibular, e acho que isso me transformou no Anton Ego da escrita — me acostumei a ler textos buscando falhas na estrutura, repetições e erros gramaticais. Fui me tornando um radar de problemas textuais, o que é útil em alguns aspectos, mas bastante limitador em outros.

Por um lado, ganhei a habilidade de escrever textos simples e claros. Mas, ao mesmo tempo, fico tão focada na forma que, muitas vezes, perco a liberdade de simplesmente dizer o que quero. Deixo o conteúdo em segundo plano, como se a maneira de dizer fosse mais importante do que aquilo que se diz.
Eis um trechinho do que escrevi na minha carta #2:
Você me escreveu pela primeira vez em novembro e, desde então, a pendência de uma resposta é um grande elefante branco na minha caixa de entrada. Acontece que, já faz alguns anos, eu me apeguei a esse hábito neurótico de “zerar o inbox”. Explico, caso você não esteja familiarizada com o conceito: zera-se um inbox apagando tudo aquilo que não presta (spam e afins), arquivando tudo o que já foi devidamente analisado e respondido e, por fim, categorizando o restante com etiquetas específicas. Sua carta ficou esse tempo todo posicionada bem no topo da lista, junto com boletos e demonstrativos de imposto de renda, todos agrupados na mesma pasta de coisas "para fazer”. Não houve um só dia desde novembro em que não tenha visto a sua mensagem e pensado que era preciso respondê-la. Desde então, três rascunhos indiscutivelmente ruins foram escritos e prontamente enviados… para a lixeira
Eu poderia concluir meu texto dizendo que, com o tempo, aquela dificuldade de colocar um texto no mundo foi se apaziguando e, aos poucos, dando lugar a uma fluidez confortável — mas estaria mentindo. Sempre que chega minha vez escrever, o desconforto toma conta das minhas mãozinhas sobre o teclado.
Mas há algo nessas cartas que torna tudo um pouco mais fácil. Ter um texto seu para responder, poder me apoiar em uma frase sua para destrinchar reflexões ou até transformar um comentário passageiro em um gancho para a próxima semana faz com que o incômodo da escrita diminua.
Nossas trocas se parecem muito com uma conversa lenta, que nunca se encerra de verdade, feita à sombra de uma amoreira, com o estômago cheio depois de um almoço no bandejão.
Beijos,
Gabi
ps: Minha carta está sendo excepcionalmente enviada numa quarta-feira, em vez da terça, porque esse início de semana foi dedicado à esmaltação de peças de cerâmica e eu não consegui nem mesmo ligar o computador até ter colocado tudo dentro do forno.
ps2: Falando em cerâmica, seu bicho preguiça segue aguardando um acabamento em esmalte. Espero seu comparecimento para a segunda parte da nossa oficina freestyle.
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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