Carta #43 (contém autocrítica)
sobre caquis, fadinhas chinesas e uma vida à altura de si mesma
Gabi,
Antes de esboçar minha resposta, eu reli sua carta no domingo à noite, enquanto jantava boa parte dos caquis que comprei na nossa ida ao sacolão. Dito isso, faço coro: vida longa à estação dos caquis de 2025!
Sua carta também me fez lembrar da Li ziqi, uma vlogger chinesa que ficou bem famosa há uns anos e a quem eu devo as poucas noites de sono durante a pandemia. Os vídeos dela criando um móvel do zero ou plantando para cozinhar um banquete para sua avó eram das poucas coisas que me acalmavam e me ajudavam a fechar os olhos. Por causa do efeito ansiolítico, apelidei a Li ziqi de fadinha.

Além de me ajudar a dormir e a botar na minha cabeça a ideia de envelhecer numa casinha no campo, os vídeos da fadinha recuperaram a minha vontade de cozinhar durante aqueles dias angustiantes. Eu tenho a impressão de que já te escrevi sobre isso, mas vou correr o risco de ser repetitiva: o tempo de preparo de cada ingrediente, o fato de que não tem muito como acelerar os processos de assar ou cozinhar, por exemplo, faz com que eu crie uma relação de respeito com o tempo que as coisas levam. Não acho que essa relação se restrinja ao cozinhar, nas poucas vezes que me arrisquei na aquarela, por exemplo, percebi que certas coisas não podem ser apressadas, nem sempre dá para cortar caminhos. De qualquer modo, é no cozinhar que me rendo ao tempo.
Voltando à sua carta, eu, enquanto uma millennial que luta para não ser uma roladora de feed, sinto alguma inveja de quem tem respostas firmes e tranquilas sobre o futuro, mas, antes de chegar lá, estar no presente já é um desafio para mim. O tempo que eu gostaria de aproveitar vivendo minhas paixões, lendo meus livros, ouvindo meus discos ou criando minhas coisinhas com linhas e tecidos às vezes escorre pelos meus dedos no feed, é inquietante.
Vira e mexe eu me lembro do sr. Hirayama do Dias Perfeitos: ter uma rotina estruturada, plena, estar completamente presente em tudo o que faz, ser afetado pelo outro mantendo um distanciamento que não é alheamento, olhar para as belezas da vida… é tudo tão bonito.
Eu gosto muito da cena em que ele joga o jogo da velha, sabe? Imagina só se permitir brincar com o outro sem querer saber tudo? Fazer um lance e aguardar? Meu jeito de brincar no parquinho é diferente: quando o outro aparece eu quero devorar, quero escrever nossos papeis e viver a fantasia que criei. Acho que isso já teve seu charme, mas agora eu gostaria de deixar o outro jogador se apresentar para mim, ser surpreendida aos pouquinhos, ficar em paz com o que se desenrola nos encontros da vida.
Não é que eu queira ter a vida de um senhor japonês. Gosto tanto dos meus dias disciplinados quanto dos dias em que eu só bolo meu cigarro e bebo meu runzinho deitada no chão ouvindo discos. Dias de dormir e acordar cedo, dias de sair sem hora para voltar. Um pouco de droga, um pouco de salada. Mas seja na vida do sr. Hirayama, na fadinha no meio das montanhas chinesas, ou no que imagino a partir das respostas dos norte-coreanos dos vídeos que você mencionou, acho que o que fica para mim é o desejo de viver uma vida à altura de mim mesma. A impressão que dá é a de que eles estão plenos de si.
Beijos,
Ana
Quem assina este texto é Ana Paula Girardi, editora de material didático, tradutora do espanhol e, às terças-feiras, também escritora.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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