Carta #31 (ou dissipando a névoa)
sobre lembrar que se é um corpo, colocar a mão na massa e brincar
Gabi,
Antes de mais nada, queria te dizer que, quando comecei a ler sua carta, a primeira coisa que pensei foi" “eita, ela resolveu reformar o uninho”. Já estava me imaginando te acompanhando em alguma espécie de Leroy Merlin automotiva para comprar peças, tintas e coisas do tipo. Eu acho muito legal esse seu talento e predisposição de reformar coisas, esse seu olhar para achadinhos caçambitos que, com suas mãos, se transformam em móveis bonitos novamente, mas confesso que estava achando que reformar o carro era um pouco demais. Depois, te imaginei quase um Dean construindo um carro praticamente do zero e comecei a me animar com a ideia novamente, resolvi voltar para a carta (ou para o mundo real) e segui com a leitura.
Foi curioso receber sua última carta, porque eu tinha acabado de ler o O perigo de estar lúcida, da Rosa Montero. Não sei se você leu, mas ela faz uma espécie de ensaio autobiográfico em que fala sobre a escrita e a relação entre a loucura, a criatividade e a solidão. Eu gostei bastante do livro, é muito sensível e, ao mesmo tempo, engraçado. Sua carta sobre recuperar a criatividade conversa bastante com esse livro e veio em um momento em que eu estava lidando com essas questões. Por aqui, eu não estava pensando tanto em termos de criatividade, eu tinha chegado à conclusão de que faltava brincadeira na minha vida.
Parece meio bobo dito desse jeito, mas o que eu percebi em algum momento dessas últimas semanas era que a vida estava ficando chata. Não tudo, não o tempo todo, eu continuava saindo, vendo pessoas, não estava solitária ou isolada, mas eu passava tantas horas e tantos dias só trabalhando que estava chato.
A primeira tentativa foi olhar para o corpo. Eu tenho muita energia e sou muito ativa. Segui com a yoguinha diária. O pilates está muito legal, minha instrutora está animada porque, bom, não sou idosinha, não tenho nenhuma lesão e sou uma maluca ligada no 220 que topa todas as séries que ela passa e os educativos para exercícios avançados. Ela inventa moda e eu faço. Coloquei musculação e corridinha nos dias que não vou para o pilates. Começo meus dias pulando da cama e indo me exercitar, volto para casa sorridente, tomo meu café da manhã ouvindo discos e cantarolando. Rola umas preguicinhas para levantar? Claro, mas eu levanto e sempre vale a pena. Só que conforme começo a trabalhar, vou ficando tensa com os prazos, com as milhares de notificações, estou com trabalho demais e com muita coisa diferente ao mesmo tempo e, no final das contas, o meu dia vai quase inteiro nisso. É chato.
Não tem atividade física no mundo que dê conta de tirar o tédio de muitas horas seguidas na frente do computador. E aqui é curioso pensar nisso, porque a atividade física está ocupando um lugar de fortalecer meu corpo para não sentir as dores que longas horas sentada digitando podem gerar. Estou me exercitando para me sentir viva e para me lembrar de que eu sou um corpo. É a névoa do capitalismo tardio que você mencionou na sua carta: passo o dia em um trabalho sedentário e mentalmente exaustivo e preciso ir para um lugar puxar uns ferros para minha cabeça não pirar e a lombar não travar. É um jeito bem burro de se viver esse que inventamos enquanto sociedade.
A segunda tentativa veio há umas duas semanas. Estava atolada de trabalho e remoendo o fato de que só lá pela segunda semana de novembro é que as coisas vão entrar em um ritmo mais aceitável por aqui, quando resolvi que chega!, iria me enfiar na oficina de costura que tanto queria e depois “eu que lute” para entregar o freela. Foi nessa oficina que me veio a percepção de que o que estava faltando era algo lúdico na minha vida.
Acho que a ideia de brincadeira foi porque, quando cheguei no ateliê sozinha e sem conhecer ninguém, me senti um pouco uma criança que chega no parquinho meio tímida e começa a se enturmar. Foi uma manhã de sábado muito gostosa. Fiz um kimono lindo para mim. Também fiquei animada que usei uma overlock. Acho que essa coisa da brincadeira também tem relação com a máquina. Eu me lembro de entrar no ateliê de costura da minha avó materna quando eu era pequena e ficar fascinada com as máquinas de costura. E lembro especialmente da overlock que ela não me deixava chegar perto porque tinha medo de que eu ligasse e me cortasse. No sábado, eu me senti uma menininha desvendando aquele mundo da costura.



Em novembro vou fazer mais duas aulas lá. Ainda não decidi o que vou costurar para mim nas próximas oficinas, mas a ideia de que terei duas manhãs de sábado entretida com tecidos e agulhas me anima.
Depois da sua carta, fiquei pensando que também queria colocar momentos divertidos no meu dia. Minha primeira ideia foi pegar um bordado enquanto assisto a uma aula. Eu sei que a ideia é parar e só fazer a coisa legal, mas não vai rolar mesmo por enquanto. Também não é muito, mas é alguma coisa e me ajuda na concentração. Ao longo do dia, dependendo da tarefa, também gosto de colocar um disco. Me obriga a levantar para colocar e depois para trocar o lado, além de que, quando me dou conta, estou cantarolando e me sentindo mais leve.
Também tenho repetido para mim que falta pouco para as coisas no trabalho se acalmarem e que posso me organizar de outro jeito ano que vem. Organizar é um verbo bem caro ao meu dicionário pessoal, como você bem sabe. Uma das vozes da minha cabeça já está bem entretida organizando meus planos para o ano que vem. Outra está planejando o recesso de final de ano e minhas férias logo na sequência.
Outra das vozes fica me lembrando de que é preciso organizar toda essa raiva e fazer algo para mudar as coisas e varrer essa névoa do capitalismo tardio para sempre. Mas isso é assunto para outra carta, ou talvez para conversas pessoalmente. Ainda mais nessa segunda pós eleição.
No fundo, acho que tudo que estamos tentando é encontrar um jeito de ter dias gostosos, de fazer o que devemos fazer para garantir nossa subsistência e conforto e de encontrar uma saída não individual para o mundo. Não é pouca coisa.
Eu estava para terminar esta carta, mas me lembrei de um hábito que tinha lá pelos idos de 2017 e que perdi com a pandemia e tem um pouco a ver com suas horinhas divertidas. Naquela época, eu estava muito animada em aprender a desenhar, estava me metendo em oficina de modelo vivo, vivia com caderninhos pelos cafés ou bares desenhando. Além disso, eu também trabalhava na pior editora que já pisei (apelidei de Chernobyl) e, meio sem perceber (na verdade eu só me dei conta do significado disso agora), eu comecei um caderninho de desenho no trabalho.
Tudo começou com uma piada sobre plantas de escritório. Eu não me lembro mais se era uma reportagem, ou um tumblr, mas me lembro que um boy que eu saía na época me mandou e eram várias fotos de plantas tristes de escritório. Fiquei fazendo piadinhas sobre eu ser uma planta triste de escritório, catei um caderninho e comecei a desenhar plantas. Depois disso, deixei o caderninho na gaveta e sempre que eu ficava muito brava com alguém ou algo do trabalho eu rabiscava alguma coisa. Quando me demiti de Chernobyl, levei meu caderninho para a próxima editora e todo o dia eu parava uns minutinhos para desenhar.
Desenhar passou a ser um respiro no trabalho. Eu gostava dessa nova editora e das pessoas de lá, o hábito de desenhar um pouquinho tinha começado no desespero e ficou porque era gostoso. O caderninho acabou perdido em uma gaveta por causa da pandemia. Naquela fatídica sexta-feira 16 de março, eu fechei as coisas e fui para casa e nem podia imaginar o que seriam os próximos dois anos. Depois, acabei me jogando na vida de freela e o caderninho nunca foi recuperado.
Tentei encontrar uma foto do caderninho do trabalho, mas não achei. Encontrei uma de um desenho que fiz depois de uns dias na praia, acho que em 2018. Já que estou contando os dias para colocar o pé na areia e fechar o ano, vou mandar meu super ego ir catar coquinho um pouco, vencer a timidez e colocar um desenho meu numa troca de cartas com uma amiga ilustradora: ousadia e alegria.

Depois de muito tempo, você vai receber uma carta minha pela manhã. Espero que sua tapioca esteja gostosa e que o Milu não peça pedaços demais.
Um beijo,
Ana
A Ana insegura em mostrar o desenho dela para a amiga ilustradora ,quando eu vejo o desenho ....simplesmente:💖🤌🤏🫦