Ana,
Li seu relato das férias na Ilha do Cardoso sentada numa cadeira de praia imaginária, sentindo a brisa do mar e mastigando camarões crocantes recém-fritos em óleo duvidoso. Os parágrafos sobre Presidente Prudente foram degustados enquanto eu descalçava galochas de borracha pra entrar na cozinha e me servir de um pedacinho de bolo de fubá.
Quando eu era criança, minhas férias escolares foram muitas vezes a mistura desses dois cenários: um pouquinho de praia, quando ia pro Guarujá com a família do meu pai, e um pouquinho de montanha, quando eu ia com meus avós maternos pro sítio na Serra da Bocaina. Uma das suas fotos em particular despertou memórias prazerosas dessa época: aquela em que você está montada num cavalo.
Pra mim, existem duas experiências que traduzem perfeitamente um estado de espírito que apelidei de sensação de liberdade. Curiosamente, não vivenciei muitas vezes nenhuma delas. A primeira é caminhar na neve – na neve espessa, que sobe até os joelhos e endurece o corpo inteiro com o frio cortante. A outra é andar a cavalo.
Caminhar na neve
Em 2009, na época em que eu estava morando na França, encontrei passagens baratas e fui com uma amiga passar uns dias em Oslo. Eu já tinha visto neve algumas vezes, mas nunca num volume tão grande. As minhas roupas não eram lá muito adequadas pra dar conta de tantos graus abaixo de zero (chegou a fazer -20ºC) e a cada meia hora passada ao ar livre eu precisava necessariamente entrar num ambiente com calefação pras minhas pernas não congelarem. Mas apesar desses perrengues de brasileira na Noruega, gostei muito de caminhar na neve. De sentir o ar congelante entrando nos pulmões.




Acho que andar na neve é uma forma de teimosia: ignorando a hostilidade da natureza a gente se sente forte, meio invencível.
Andar a cavalo
Eu só andei a cavalo umas poucas vezes na infância, no sítio que mencionei. A sua foto em Presidente Prudente me lembrou do dia em que meu avô celou os cavalos e eu subi na Madonna. Ela era uma égua preta de pelos reluzentes, bem alta e pouquíssimo fã de acatar comandos, no melhor estilo animal indomável. Naquele dia, quando estávamos terminando nosso passeio, ela disparou por uma subida que terminava em frente à casa. Fiz de tudo pra me segurar, mas acabei caindo com força no fim da ladeira, de costas pro chão. Assim que me levantei, percebi que não conseguia respirar. Puxava o ar com força, mas ele não passava da garganta. O impacto da queda tinha sido forte demais pros meus pulmões e achei que ia morrer. Minha avó saiu correndo de dentro de casa, ainda de avental, e me ajudou a me acalmar. Aos poucos, a respiração voltou ao normal.
Essa é minha memória mais marcante envolvendo cavalos, e foi ela que veio à mente quando vi sua foto. Mas não exatamente porque tenha ficado traumatizada com a queda. No percurso que antecedeu o tombo, a Madonna tinha acatado pouquíssimas das minhas tentativas de controlá-la, trotando ao seu bel-prazer enquanto eu fazia o enorme esforço de me manter presa às costas dela. Num dado momento, começou a galopar. Meu corpo era atirado para o alto e eu tinha medo de cair, mas fiquei encantada com a experiência de permanecer uns segundos suspensa no ar, correndo pelo meio do mato e tendo que abaixar a cabeça pra não bater nos galhos das árvores.
Acho que andar a cavalo tem muito a ver com abrir mão do controle. Cavalos têm vontade própria, reagem ao ambiente, leem nossos medos e inseguranças. Cavalgar é um acordo silencioso de confiança entre dois seres vivos. Naquele dia a Madonna topou fazer por algum tempo uma espécie de pacto comigo, no qual tinha um poder de decisão muito maior do que o meu. Depois deu um jeito de me ejetar das suas costas no fim do passeio, à revelia (ou por causa) dos meus gritos desesperados que tentavam fazer as vezes das rédeas que eu já havia desistido de usar.
Eu comecei falando de liberdade e termino pensando que talvez essa sensação que fiquei tentando traduzir tenha a ver com entrega. Com permanecer em circunstâncias que envolvem correr algum tipo de risco, ainda que calculado e que, por isso mesmo, despertam medo. Quem sabe você me ajuda a pensar sobre isso numa próxima carta?
Beijos,
Gabi
Quem assina é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Esse texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
Se você gostou do que leu, deixe um comentário. Vamos adorar conversar por aqui. Você também pode compartilhar esta carta com quem talvez vá gostar de lê-la.
Nossa sim as férias da Ana foram muito parecida com as que a gente tinha na infância e adolescência, que privilégio você poder viver isso agora na vida adulta.Meus parabéns para Ana e Gaby pela coragem de fazer o tal "pacto" com os cavalos e éguas hahaha .Apesar de não ter coragem,acho lindo de assistir e as fotos em cima de um bichano tão selvagem e lindo assim ficam lindas demais .