Ana,
Já estamos quase em abril e, felizmente, é chegada a temporada mais esperada do ano: a da colheita dos caquis. Poucas coisas são capazes de me proporcionar maior felicidade do que ir até a geladeira no meio da tarde e retirar de lá de dentro um caqui geladinho e suculento. Vida longa à estação dos caquis de 2025! Que as bandejinhas de isopor com seis caquis do sacolão permaneçam baratas por muitas semanas vindouras!
Além da safra de caquis, o mês de março teve um acontecimento que eu acho que vale mencionar: a Coreia do Norte voltou a receber alguns grupos de turistas após ter mantido as fronteiras fechadas pelos últimos cinco anos. Eu descobri essa história por causa de um youtuber inglês chamado Mike O'Kennedy que documentou em dois vídeos publicados em seu canal uma viagem para Rason, cidade litorânea que fica bem ao norte da DPRK (República Popular Democrática da Coreia). Confesso que achei o tal do Mike meio bobo—especialmente porque fazia questão de terminar todas as suas noites bêbado (e de acordar no dia seguinte de ressaca), mas maratonei uma seguida da outra as partes 1 (link aqui) e 2 (link aqui).

Nos vídeos ele segue um itinerário superplanejado pelos guias da agência de viagens que os acompanhou do início ao fim. A experiência se parece menos com um roteiro turístico e mais com uma espécie de mostra cultural muito bem ensaiada pra divulgar as qualidades do país aos visitantes estrangeiros. É meio que um pot-pourri de lugares esquisitos, meio kitsch, meio sem pé nem cabeça: uma visita a uma gruta de água mineral em torno da qual foi construído um predinho feioso, uma passadinha na loja de souvenires e na casa erguida em nome da amizade entre Rússia e Coreia da Norte, uma parada no campo pra alimentar veados com espigas de milho, um passeio pelo ginásio de taekwondo.
Depois de ver os vídeos do canal do Mike Okay, recebi do algoritmo a recomendação de outros youtubers que tinham documentado exatamente o mesmo roteiro. Entendi então que existe um nicho de “viajantes super extreme” de YouTube, que se especializam em destinos pouco convencionais e meio inacessíveis, como zonas de guerra e países comandados por governos autoritários, e que esses caras deviam estar há anos numa fila gigantesca pra conseguir visitar a Coreia do Norte assim que as fronteiras fossem reabertas. Um desses viajantes é o argentino Ale Salvino. Ele foi exatamente aos mesmos lugares que o Mike, mas documentou tudo segundo uma perspectiva um pouco mais interessante. (link pro vídeo dele aqui)

Em uma tentativa de entender a vida dos locais, fez várias perguntas a uma das guias do seu grupo, Srta. Kim. Quis saber, por exemplo, o que ela gostava de fazer no seu tempo livre. Ouvir música, jogar badmínton e pingue-pongue, ela respondeu. Também disse que adorava ler e assistir a filmes chineses, russos e indianos, mas que pra ela não fazia sentido consumir algo que servisse apenas para diversão e entretenimento. Tudo o que lia ou assistia precisava ter um propósito edificante.
Em seguida, Ale pergunta sobre o futuro: o que ela planeja fazer nos próximos cinco anos? A resposta vem sem hesitação: nada em especial. Pretende continuar exercendo seu trabalho e contribuindo para tornar públicos os grandes feitos de Kim Jong-un.
Fiquei muito tempo refletindo sobre essas respostas, sem nunca chegar a conclusão nenhuma. Confesso que esses vídeos na Coreia do Norte bagunçaram a minha cabeça. Ah… se essa Srta. Kim soubesse a que ponto nós, em pleno usufruto de nossas liberdades individuais, estamos afundados na crise do entretenimento… Se ela soubesse o grau de ansiedade que uma pergunta sobre os planos pro futuro, que ela respondeu com tanta calma e nenhuma intenção de se destacar em relação aos seus conterrâneos, poderiam gerar no cidadão millennial médio rolador de feed de redes sociais… Por outro lado, como é que ela organizaria a própria identidade se tivesse nascido, sei lá, no Brasil? O que é que ela escolheria fazer nos próximos cinco anos?
Eu acho que, se nascesse norte-coreana, lutaria muito taekwondo. Além disso, como sempre gostei de estudar línguas, é possível que me tornasse guia turística como a Srta. Kim. Se bem que não deve haver muitas vagas pra esse cargo por lá. Então talvez fosse melhor estudar desenho e trabalhar numa agência de criação de cartazes de propaganda governamental.
De qualquer forma, uma coisa é quase certa: como o caqui veio pro Brasil com a imigração japonesa, eu concluo que deve existir plantação de caqui a rodo na Coreia. Então, como norte-coreana, manteria esse traço da minha personalidade: continuaria a ser alguém que adora comer caqui.
Um beijo,
Gabi
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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