Ana,
Na sua última carta você falou do Mário Levrero e na hora me veio à cabeça a rotina tóxica e obsessiva que ele descreve no Romance Luminoso. Aquela vida de trocar o dia pela noite, de acordar sempre tarde demais pra pegar o comércio aberto, já com a sensação de que o dia foi perdido. Fumar demais. Passar horas lidando com tarefas aleatórias - resolver problemas irrelevantes no computador, marcar hora no dentista, instalar um ar-condicionado, comprar móveis pra deixar a casa agradável o suficiente pra finalmente, quem sabe, começar a dedicar-se à tarefa de escrever. Viver falando da vontade de escrever, da pressão de escrever, da frustração por não conseguir escrever. Ficar monitorando a si mesmo, analisando os próprios fracassos como quem observa um rato de laboratório definhar na gaiola. Ler esse livro é muito bom porque a gente termina inevitavelmente achando a nossa própria rotina muito funcional (mesmo se a gente tem a pior rotina do mundo).
Falando em rotina, aliás, tô lendo um livro chamado Os segredos dos grandes artistas, de Mason Currey. O autor reúne, em trechos curtinhos e gostosos de ler, as rotinas de artistas, escritores, compositores, cientistas… Cada capítulo traz o retrato de um criativo, com suas manias, obsessões e jeitos de organizar os dias. Ainda tô na metade, mas por enquanto a única rotina que consegue rivalizar com a do protagonista do Romance Luminoso é a escritora de thrillers psicológicos Patricia Highsmith, que viveu entre 1921 e 1995. Cito o livro, que por sua vez cita o biógrafo da escritora, Andrew Wilson:
“Sua técnica favorita para se colocar no estado de espírito certo para trabalhar era sentar-se em sua cama rodeada de cigarros, um cinzeiro, fósforos, uma caneca de café, um donut e um pires com açúcar. Ela precisava evitar qualquer senso de disciplina e tornar o ato de escrever o mais agradável possível. Sua posição, observou ela, era quase fetal e, de fato, sua intenção era a de criar, segundo disse, ‘um útero para si’.”
Um pires com açúcar! É assim que alguns constroem seu próprio reduto criativo… Benjamin Franklin, por outro lado, era um pouco menos permissivo com seus hábitos e impunha-se altíssimas doses de disciplina diariamente. Todas as manhãs, ao acordar, praticava seu “banho de ar” — o equivalente do século XVIII ao banho de gelo das blogueiras fitness. Ele conta em sua autobiografia:
“Com esse propósito, eu me levanto cedo quase todas as manhãs, e sento-me no meu quarto sem roupa alguma, por meia hora ou uma hora, de acordo com a estação do ano, e leio ou escrevo. Essa prática não é nem um pouco dolorosa; ao contrário, é bem agradável. Se eu volto para a cama mais tarde, antes de me vestir, como às vezes acontece, complemento o descanso da noite, dormindo uma ou duas horas do sono mais agradável que alguém possa imaginar.”
Sim, é isso mesmo. Além de passar suas manhãs peladão, Ben Franklin seguia uma rotina dividida em blocos de tempo. Fico imaginando o que ele não faria com o Google Agenda…
Além disso, Benjamin Franklin praticava todas as manhãs o que chamava de “contato com a Divina Providência”, que é mais ou menos o que as TikTokers chamariam de devocional e que eu chamo de meditação. Quando voltei do retiro de Vipassana no início desse ano, estava muito mais calma, tinha curado meus problemas de insônia e estava decidida a manter minha prática diária a qualquer custo. Pra poder contar os minutos matinais reservados ao tempo sentada no meu zafu, precisava de um temporizador que não fosse o celular pra não precisar encarar minhas notificações logo cedo. Foi assim que encontrei um temporizador amarelo no formato de dodecaedro numa vitrine virtual da Shopee. Demorou três semanas pra chegar da China, e desde então virou meu melhor amigo. Apelidei-o de Trocinho. Levo o trocinho pra lá e pra cá o dia inteiro.
Ele funciona assim: você liga, escolhe se quer que apite, vibre ou só pisque uma luz, define o tempo (há opções que vão de 1 a 90 minutos), posiciona o número desejado pra cima, e pronto. No fim do tempo marcado ele emite um aviso no formato escolhido.
Uso o trocinho pra tudo: marcar meu tempo de estudo de desenho toda manhã, marcar os blocos de trabalho criativo depois do café, o tempo da faxina, ou pra lembrar de tirar uma torta do forno. Talvez seja por seu formato de poliedro — sólido, pesado, geométrico — que o tempo com ele ganha uma concretude curiosa. Tenho a sensação de que os minutos, agora, são menos abstratos. No fim do dia, quase consigo enxergar os bloquinhos de tempo empilhados. Como não tem visor, também não fico checando o tempo toda hora, o que ajuda a reduzir minha ansiedade.
Talvez isso se explique pela psicologia. Em outro capítulo do livro de Currey, ele fala de Skinner, o fundador da psicologia comportamental que, assim como eu, era um viciado em temporizadores:
“tratava suas sessões diárias de escrita como um experimento de laboratório, condicionando-se a escrever todas as manhãs por meio de dois comportamentos autorreforçadores: ele começava e parava ao som da campainha de um temporizador, e anotava cuidadosamente em um gráfico o número de horas que escrevera e de palavras que produzira.”
Além de cronometrar seu tempo, Skinner também gostava de monitorar sua produtividade em gráficos:
“Quando me sento, acendo uma luminária especial de mesa. O botão aciona um relógio, que totaliza o tempo que passo à minha mesa. A cada 12 horas gravadas, desenho um ponto numa curva cumulativa, e o traçado mostra minha produtividade geral.”
Tem mesmo todo o tipo de gente nesse mundo, né? Tem quem crie um útero de donuts, açúcar e cigarros e também tem quem invente um botão que aciona um relógio pra monitorar a produtividade.
Todo esse papo me lembrou também das tardes em que a gente ia trabalhar naquela padaria horrorosa na Alameda Barros. Lembra? Você com suas traduções, eu com as redações.
Naquela época eu andava muito empolgada com o método Pomodoro — uma técnica de produtividade criada nos anos 1980 pelo italiano Francesco Cirillo, que propunha trabalhar em blocos de 25 minutos seguidos de pequenas pausas. A ideia era simples: foco total por um curto período, descanso breve e depois mais um bloco. Ele usava um cronômetro de cozinha em forma de tomate (pomodoro, né?), e o nome pegou. Então, quando nos sentávamos na mesa da padaria, colocávamos 25 minutos no timer do celular e trabalhávamos em silêncio. Quando o apito tocava, a gente se dava uma pausa pra conversar. Às vezes, mesmo com o garçom mal-humorado, nos arriscávamos a pedir um café ruim e frio ou aquele pão de queijo borrachudo que parecia ter sido assado dois dias antes. Assim fomos atravessando, juntas, muitos fins de domingo chuvosos e concluindo, juntas também, atividades não tão prazerosas assim.
Anos depois, continuo cronometrando blocos de tempo, mas sinto falta de uma pausa compartilhada entre eles. Quem sabe qualquer dia desses a gente não marca de repetir o ritual — só que numa padaria menos horrorosa?
Beijos,
Gabi
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício quinzenal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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Peguei as duas referências de livros ,fiquei curiosa e sim meninas vão a uma padaria com café quente,vcs merecem .