Gabi,
Terminei de ler sua carta e passei um bom tempo pensando em quais experiências ou situações me trazem uma sensação de liberdade. Não tive a experiência de caminhar na neve, mas concordo que andar a cavalo traz essa sensação, então vou começar por aí.
Na montaria na fazenda, demorei um tempinho até me entender com o Chocolate. Eu não queria dar as batidinhas nele, tampouco queria puxar as rédeas porque me pareciam atos agressivos. Aos poucos, fui entendendo como fazer tudo isso (de forma firme, mas gentil) e ele foi me obedecendo. Nessa sintonia, eu parei de pensar em como controlá-lo e ele foi me levando, enquanto eu aproveitava para admirar a paisagem e deixar meus pensamentos fluírem.
Eu me senti livre andando a cavalo justamente quando percebi que não podia controlá-lo, mas que, de alguma forma, eu confiava no que estávamos fazendo. Eu não tinha como controlar as reações do Chocolate, nem, sei lá, controlar se ele ia ou não escorregar no barro, disparar, ou se um galho ia bater em mim, mas eu confiava que saberia lidar com qualquer situação. Poderia dar errado? Claro, mas o risco faz parte e tempera a brincadeira.


Fun fact: lá pelos idos de 2010, eu pegava freelas de preparação de livros em uma editora de Psicologia. Para minha sorte, a maior parte dos livros que me enviavam era sobre Psicanálise (foi daí que surgiu meu interesse pela área), mas certa vez mandaram a preparação de um livro sobre técnicas de seleção em RH (alguma coisa assim, já não me lembro bem, foi há uns 15 anos) e havia um capítulo dedicado à seleção de executivos para altos cargos e o teste envolvia cavalos. A proposta era, a partir de como o candidato montava e da relação que estabelecia com o cavalo, analisar sua personalidade, confiança e liderança.
Eu me lembro de achar alguns aspectos mencionados até que interessantes, mas a maior parte uma grande baboseira que não dizia muito sobre as capacidades de um gestor, além de, convenhamos, o lance com cavalos ser extremamente elitista. Mas, enfim, o que esperar de algo para seleção de CEOs? Luigi, corre aqui.
Voltando à lista, outro momento em que experimento a sensação de liberdade é quando ando de bicicleta. Aqui, vencer o medo é um dos elementos mais presente na tal da sensação de liberdade.
Na cidade, tenho medo dos carros e da violência urbana. Vencer esse medo, subir na minha bicicleta e pedalar nem que seja um pouco ou por lugares que conheço bem, faz eu me sentir potente. Fora da cidade, quando eu vejo a paisagem aberta, sinto o sol, o vento no rosto e todas as reações do meu corpo, também sou invadida por essa sensação de potência e me sinto livre.



Um breve parênteses: a Rosa Montero tem um livro lindo sobre a Marie Curie (que também é sobre luto), o A ridícula ideia de nunca mais te ver, em que ela conta que a Marie e o Pierre usaram o dinheiro que ganharam de presente de casamento para comprar duas bicicletas e pedalar por metade da França. Sério, o que dizer? <3
Para fechar a lista (eu escolhi só três experiências ou a carta ficaria gigantesca), eu queria contar de quando escalei (indoor). Eu vivia falando que queria escalar porque me parecia muito divertido. Também queria testar se eu tinha ou não medo de altura. Queria colocar a força dos meus braços e pernas à prova. Queria tentar algo novo. E, assim, um belo dia postei nos stories algo sobre querer escalar e a Gio me respondeu. Ela me explicou algumas coisas e se ofereceu para me guiar. Nos encontramos em uma sexta no final do ano passado, e, para mim, foi uma experiência incrível.
Mesmo fazendo atividades de força regularmente, meus braços ficaram moídos e doeram de um jeitinho todo especial depois da escalada. Mas o que eu achei mais desafiador foi encontrar o equilíbrio entre ser racional e confiar na intuição.
O lance é que a cor das agarras está relacionada com uma espécie de trilha (sei lá qual é o vocabulário correto e não vou pesquisar), um caminho construído em níveis de dificuldade. Escolhemos um para iniciante e a ideia era que eu me guiasse pela cor. Eu até poderia simplesmente pegar uma agarra de outra cor perto e continuar, mas eu queria “fazer certinho”. A dificuldade que mencionei entre ser racional e seguir a intuição era que não dá pra pensar ou calcular demais (e, convenhamos, meu jeitinho tende a ser racionalizar e ponderar tudo). De um jeito curioso, se você se entrega, o corpo meio que diz a melhor forma de pisar ou de segurar nas agarras. Tem a ver com o formato e a posição delas? Claro que tem, é física, mas também é sobre você escutar seu corpo, sentir seu alongamento, sua abertura de pernas, o ponto onde consegue colocar sua força e confiar nisso. Se você pensar muito, vai começar a sentir o cansaço, o braço fraquejando, o chão muito longe… e vai travar.
Além da parte física, também fiquei encantada com a parte mental da coisa (se é que dá para separar tanto assim). A Gio estava fazendo minha segurança, isso quer dizer que a corda que saía (e prendia) minha cadeirinha passava por uma polia no teto e se prendia à cadeirinha dela, que ficava lá embaixo acompanhando tudo. Se eu largasse as agarras e caísse, ela quem travaria a corda e me desceria aos poucos. Bicho, subir uns 10 metros agarrando “pedrinhas coloridas” e olhar para baixo gela o estômago de um jeitinho todo especial, mesmo sem ter lá um grande medo de altura. Ali em cima, eu me dei conta (com um certo espanto) de que estava totalmente entregue a ela. O mais legal é que não fui invadida por um medo, mas sim por uma sensação de beleza por conta dessa entrega. Continuei subindo, ouvindo as palavras de incentivo da Gio, sentindo meu braço tremer e repetindo para mim mesma “não olha pra baixo”, “tá tudo bem, só mais um pouco”.
Em uma das vezes que encarei a parede novamente naquela tarde, me lembrei do conselho dela, de que eu poderia "sentar no ar”, lembrei quando estava me sentindo muito cansada e o medo estava pegando. É muito doida essa sensação de estar sentada no ar, começar a respirar fundo para se acalmar sozinha, voltar a agarrar a parede e subir.

Passei a tarde assim, observando a Gio escalar, depois escalando algumas vezes, cada vez um pouco mais alto do que a anterior, dominando meu medo, confiando e entregando minha segurança a outra pessoa. E, cara, ainda que tivesse umas cordas no meu quadril me amarrando, eu estava me sentindo muito livre.
É, de novo, a sensação de liberdade que sinto ao perceber a potência do meu corpo, ao encarar um medo, e, sobretudo, ao confiar. Seja num cavalo, em mim mesma, ou em outra pessoa, confiar é também um risco. O cavalo pode disparar, eu posso falhar, a Gio poderia se distrair e demorar para perceber que me soltei… mas sem o outro a experiência não se completa. Fica capenga.
Talvez seja por isso que eu acredito muito em compartilhar a vida, sabe? Não digo apenas no sentido amoroso (que também acredito). Digo compartilhar a vida com as pessoas de modo mais amplo, estar rodeada de amigos, compor grupos, trocar experiências com quem está disposto e aberto. Só assim acho que a vida faz sentido. Só assim o vazio se torna uma possibilidade de criação e possível de sustentar. Para isso, é inevitável: tem que se arriscar e confiar.
Beijos,
Ana
Quem assina este texto é Ana Paula Girardi, editora de material didático, tradutora do espanhol e, às terças-feiras, também escritora.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício semanal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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que fofo e querido o Chocolate <3 tive que comentar hahaha