Gabi,
Estou há uns dias intrigada com uma vlogger japonesa. Tudo começou com o youtube me recomendando o canal A vida de Nami depois que reassisti a alguns vídeos da Li ziqi para escrever a minha última carta. Na descrição do canal, a Nami se identifica como uma funcionária de escritório que vive sozinha em Tóquio e diz que o vlog é sobre nada mais do que uma “vida normal”. Ela também conta que não tem nenhuma habilidade especial, nenhum hobby, apenas vive a vida em seu ritmo. Apertei o play.
Não posso dizer que Nami não entrega o que promete. Sem mostrar o rosto, acompanhamos nossa protagonista acordando, preparando uma refeição, saindo para trabalhar, voltando do trabalho, preparando outra refeição e indo dormir. Em um vídeo, ela mostra tudo o que tem dentro de um armário na entrada de seu apartamento. Em outro, aproveita o dia de folga para fazer uma faxina.
O que era para ser um convite à naninha, começou a me tirar o sono. Eu apertava o play esperando dormir em menos de dois minutos, mas, quando dava por mim, estava pensativa sobre o fato de que um vídeo sobre sua rotina em uma manhã de folga teve quatro milhões e oitocentas mil visualizações. E não para por aí! No vídeo, enquanto passa roupa, ela conta que (e cito literalmente) “outro dia coloquei uma calça jeans que tirei rapidamente da máquina de lavar e saí. a bainha estava tão enrugada. passei o resto do dia desejando que ninguém olhasse para os meus pés”. Quatro milhões e oitocentas mil visualizações!!!
Preciso ser justa, as legendas não me prendem apenas por serem um amontoado de histórias sem graça. Como elas são geradas automaticamente a partir do original em japonês, as traduções ficam muito estranhas. Às vezes dá para perceber um resquício de imagem poética embaralhada na tradução e eu fico (com base em nada, pois não sei japonês) tentando imaginar de onde isso teria saído no original.
Seguindo minha obsessão, mandei a rotina de higiene do sono para as cucuias e continuei dando play enquanto deveria contar carneirinhos. Comecei a reparar no enquadramento que ela faz para nunca mostrar o rosto, na edição simples do vídeo e em como ela monta as sequências para dar a ideia de passagem do tempo ou para mostrar que se deslocou de um lugar a outro. Basicamente, perdi umas horas de sono brincando de ser crítica de vídeo de youtube.
Nada disso me explicou por que um milhão setecentos e dez mil pessoas se inscreveram no canal. Opa! Deixa eu assinar aqui para não perder o próximo vídeo da Nami acordando, se alimentando e mantendo a casa em ordem! Percebe? Contudo, euzinha dei alguns plays e nem posso dizer que foi apenas para fins de escrita.
Tudo me levou para mais dois questionamentos. O primeiro: o que será que a Nami faz quando a câmera está desligada? Algumas hipóteses: dança pelada pela sala? Come direto da panela e não em uma cerâmica bonitinha? Deixa roupas e bolsa largada pelo chão e se afunda no sofá? Ou só faz o mesmo de sempre, porém mais rápido já que não tem que ficar ligando e posicionando a câmera a cada passo? Nami, gimme more!
O outro questionamento está relacionado a sua última carta. Nela, você explicou o processo necessário para fazer uma caneca de cerâmica e o quanto ser ceramista é uma oportunidade de exercitar o desapego. Eu totalmente veria um vlog de um dia de trabalho seu. Já do meu… Bem, tenho a impressão de que meu trabalho é o contrário de tentar desapegar, eu preciso estar no controle o tempo todo. Quanto edito, preciso avaliar o original do autor, trabalhar no texto, me certificar de que não há erro conceitual, de que a linguagem está adequada para a faixa etária, de que as imagens podem ser licenciadas, de que nenhuma foto ou ilustração veicula preconceito ou estereótipo, se há diversidade racial e de gênero nelas, depois validar o trabalho da preparação e da revisão, e saber exatamente em qual etapa cada arquivo está para me certificar de que o prazo final não vai estourar. O único entretenimento que uma câmera parada em frente à minha escrivaninha geraria é o fato de que eu gesticulo enquanto escrevo. Sabe gente que fala com as mãos? Bem, eu digito gesticulando tanto quanto eu falo com as mãos (isso já foi motivo de crise de riso de uma colega de trabalho presencial).
Se o vlog fosse em um dia em que estou escrevendo ou traduzindo, eu entregaria um vídeo de uma maluca andando em círculos pela casa enquanto tenta alcançar uma frase precisa. E fazendo dancinhas quando acha que chegou lá.
Estou me avacalhando um tanto, é claro. Meus dias não se resumem a trabalhar, mas, olhando de dentro, me acompanhar editando não parece ter nada de especial. Contraditoriamente, uma das quatro milhões e oitocentas mil visualizações do vídeo da rotina banal da Nami foi minha. Talvez descobrir como o outro passa algumas horas do dia não seja tão desinteressante assim. Será?
Beijos,
Ana
P.S.: semana passada eu dei uma surtadinha por causa do combo autoescola sendo muito sacana comigo + prova prática e acabei não conseguindo enviar a carta. Para fazer do limão uma limada, acabei aproveitando o momento caótico para colocarmos em prática algo que estávamos conversando há um tempinho: vamos passar a enviar as cartas quinzenalmente. Assim, temos tempo de escrever com calma e com prazer, sem que o gosto amargo da obrigação estrague a brincadeira. Então, espero sua resposta daqui duas semanas :)
P.S.2: Ana pilota tá on demais, a CNH veio.
Quem assina este texto é Ana Paula Girardi, editora de material didático, tradutora do espanhol e, às terças-feiras, também escritora.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício quinzenal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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