Ana,
Na sua última carta você falou sobre atravessar o caos. E fez uma coisa muito Ana de se fazer: criou uma lista prática de pequenos gestos que te puxam de volta pro eixo.
Você é, sem dúvida, uma das pessoas mais organizadas que eu conheço. Sempre que vou na sua casa, fico com a mesma sensação que tenho quando entro no apartamento da minha avó: a de que cada objeto tem seu lugar exato na prateleira, como se ficasse desconfortável fora dali. Eu não sou assim. Tenho um pouco mais de tolerância à desorganização. Não chego a viver no caos, mas minha ordem é mais frouxa, mais emocional. Suporto uma certa bagunça, sim — mas só até o ponto em que ela começa a sinalizar o meu próprio caos mental. E aí, toca fazer faxina.
Uns dias depois de ler seu texto eu assisti a dois programas do ARTE, que é um canal público de tevê franco-alemão, falando justamente sobre o tema da ordem. Ambos tentavam investigar se a ordem é capaz de trazer felicidade pras nossas vidas.
Adorei o trabalho de um dos artistas apresentados no programa: o humorista suíço Ursus Wehrli, que reorganiza cenas do cotidiano e obras de arte como se tudo fosse desmontável e pudesse ser remontado por cor, por forma, por tipo (vou deixar umas fotos aqui embaixo). Ele separa os ingredientes de um prato de comida, classifica folhas de outono por tonalidade, organiza minuciosamente os elementos de uma pintura. Tem algo de obsessivo, algo de engraçado, algo de inútil.
Num dado momento do programa, Ursus fala sobre como a ordem termina sempre em caos, se nós deixamos que isso aconteça. É o destino da ordem: transformar-se em caos. E o caos, segundo ele, é necessário, se queremos ser criativos. Ele também fala do quanto, conforme envelhecemos, acumulamos mais e mais objetos, e passamos muitas horas classificando-os, rearranjando-os, movendo-os de uma prateleira a outra.
Lembrei do Poética do Espaço, do Bachelard, que li mil anos atrás. Voltei num trecho em que ele fala das casas como lugares da imaginação — e do quanto esses espaços dizem mais da gente do que parece. Ele escreve:
O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses "objetos" e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como nós, para nós, por nós, uma intimidade.
Tenho sonhado muito com casas. Casas que são minhas, mas não exatamente. Elas às vezes têm cômodos de que eu não me lembrava, espaços esquisitos que de alguma forma ainda são familiares. No último sonho, eu morava no topo de uma colina. A vegetação ao redor não era muito brasileira. Tudo era meio frio e nublado. A parte interna da casa era bem branca, meio hospitalar, quase reluzente. Dividia o espaço com outras pessoas, mas nenhuma delas se oferecia pra ajudar a arrumar uma porta arrebentada. Eu passava um tempão sozinha, vasculhando uma caixa de ferramentas caótica, tentando achar o parafuso certo pra fazer aquele conserto.
Fico pensando nas muitas coisas que eu possuo e que se espalham pela minha escrivaninha, pelos gaveteiros, pelas prateleiras dentro dos armários. Penso nos livros, nos papéis, nas tintas, nos cabos HDMI. Nos copos, nos talheres, nos pincéis, nas canetas ganhadas de brinde, nas calças jeans. Na minha caixa de ferramentas - que na vida real é mais organizada do que era no sonho. Penso na forma como esses objetos estão dispostos, na lógica silenciosa que vai se formando entre eles: o que fica à mostra, o que se esconde, o que se acumula em pilhas esperando um destino.
Um beijo,
Gabi
Ps: Vou deixar os vídeos que assisti aqui embaixo :)
Quem assina este texto é Gabriela Motta, ilustradora, ceramista e, às terças-feiras, também escritora. No Instagram você pode conhecer melhor seu trabalho.
Este texto faz parte da newsletter Cartas na Amoreira, um exercício quinzenal de escrita e de amizade publicado por Ana Paula e Gabriela. Para saber mais sobre as autoras e as cartas, clique aqui. Para assinar gratuitamente, clique no botão.
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Que lindo a parte da casa ser toda branca isso com ctza significa algo bom...sobre você ficar horas escolhendo a ferramenta perfeita para consertar a porta a caixa de ferramentas pode ser seus pensamentos ou ideias e como vc é criativa gosta de pensar sempre na melhor ideia por isso ficou tanto tempo escolhendo ,acho que a parte de ter mtas pessoas em volta é nenhuma se oferecer para arrumar a porta ,pode simbolizar as relações hoje em dia que são superficiais ou simbolizar as suas próprias relações...isso tudo sou eu que acho hahaha amo ler seus sonhos e fico tentando decifrar.Beijo meninas vcs são demais!(deviam fazer um podcast no Spotify com imagem e tudo)
Portugese always throws me for a loop. Learning Spanish and trying to read Portugese is akin to learning algebra and trying to read calculus.